quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A encruzilhada



         
A noite estava escura, estrada escorregadia, silenciosa. Em tempos de inverno fica assim. Sempre faz muita lama por causa do massapê encharcado pela água da chuva. O Sr. Joaquim seguia montado a cavalo rumo ao seu sítio que ficava perto dali. Cavalo bom, manso, Capricho era o nome dele. Semanalmente, cavalo e cavaleiro faziam esse percurso. Nunca se importou com o que diziam sobre a encruzilhada do caminho pela qual sempre passa. Nunca acreditou nos comentários daqueles que passavam por ali fora de hora. Diziam que era mal-assombrada, que aparecia um bicho preto que ora parecia um lobisomem, ora parecia um minotauro. Às vezes, o bicho aparecia até em forma de um galo bem valente de esporões compridos que corria em direção ao passante abrindo as suas asas e jogando os dois pés na vítima tentando derrubá-la. Ele ria de tudo isso, principalmente deste galo que parecia saber lutar karatê.
Toda semana era assim. Ele vivia vendendo gado para o abate e uma vez na semana vinha receber o pagamento das cabeças que vendera para o frigorífico da cidade. Por seu ofício, era carinhosamente chamado de Seu Quinco da várzea. Durante todo esse tempo, nunca vira nada. Para ele, aqueles que lhe podiam fazer mal eram os vivos e, por isso, ele não tinha nenhuma preocupação, pois não tinha inimigos e não havia ladrões nas redondezas. Andava a cavalo não por comodismo, dizia ele, ou por causa do inverno rigoroso, mas aqueles mais íntimos sabiam que era por causa da grande incidência, nesta época, da aranha caranguejeira. Bicho pelo qual ele não nutria nenhuma simpatia. Às vezes até sentia pena do seu velho companheiro Capricho ser obrigado a vir com ele em um passeio tão curto.
- Meu amigo, bem que você podia ficar se refestelando com capim verdinho molhado com o sereno da noite, do que andar nesse escuro de breu e neste lamaçal, mas... E as aranhas? Melhor prevenir do que remediar. Dizia ele baixinho ao seu velho companheiro, que até parecia entender.
Seguiam davagarinho, sem pressa de chegar. Nos alforjes, pão quentinho para, chegando em casa, tomar com café.
Estavam chegando à famosa encruzilhada quando o cavalo se assustou e estancou. Seu Quinco o instigou, meteu as esporas nele, mas ele assoprou e levantou as duas patas dianteiras.  O homem insistiu no gesto agora lhe aplicando também uma boa chicotada, mas ele se encolheu, relinchou, e saiu andando de costas com as orelhas em pé. O cavaleiro sem entender, pois nunca seu cavalo havia feito isso, tentou novamente forçar para que ele passasse. Capricho empinou e deu uma popa. Seu Quinco se desequilibrou e caiu dentro da lama. Dizem que cavalo quando derruba o dono, geralmente fica pertinho dele, esperando que ele se levante, mas não foi o que aconteceu. O animal voltou em disparada rumo à cidade. Seu Quinco ficou tateando no escuro, tentando se levantar, quando ouviu uns estalos como se fossem galhos quebrando dentro do mato. Olhou na direção do som e nada viu. Com os olhos agora acostumados ao escuro, levantou-se e procurou na sua cintura uma faca peixeira, mas lembrou que a havia deixado dentro do pacote junto com os pães. Estava a pé e sem arma alguma com a qual pudesse se defender. Andou para o meio da estrada e tentou enxergar a causa do ruído no aceiro do mato. A mais ou menos dois metros, um par de olhos que brilhavam no escuro o observava. Instintivamente, levantou os dois braços naquela direção e exclamou:
- Ô bicho! Sai, sai, sai! Os olhos não se moviam. Apenas piscavam.
Seu Quinco, olhando mais atentamente, viu que se tratava de um bicho preto. A princípio, achou ser um bezerro fujão, mas logo percebeu que se tratava de um animal de mais ou menos dois metros de altura. Parecia peludo como um gorila. Sim, parecia um gorila... Era um gorila.
- Gorila? Mas aqui não tem gorilas! Pensou ele agora já com os poucos cabelos da cabeça em pé.
Esfregou os olhos com as mãos tentando ver melhor. O bicho nada fazia. Apenas o observava como se esperasse a hora certa para dar o bote. Ele se abaixou procurando no chão uma pedra que fosse para jogar nele, mas nada de sólido achou. Apenas lama. Encheu a mão assim mesmo e jogou na direção do animal. Este, por sua vez, saltou de lado e a lama não o atingiu. Quando o animal fez este movimento, ele percebeu que tinha visto errado. Não era um gorila. Gorila não tinha chifres.
- Meu Deus! É o tal do minotauro! Vixe Maria... É coisa do outro mundo! Primeiro veio em forma de gorila. Agora se virou nessa coisa! Dizendo isso, pensou em correr, antes que o bicho assumisse a forma de galo com aptidões ninjas, mas com tanta lama, seria impossível.
 Impossível nada. Quem se lembraria desse detalhe com tanto medo? Começou a andar de costas e quando consegui se virar... Pernas pra que te quero! Corria e olhava pra trás e a cada vez que olhava a coisa vinha mais perto. O bicho vinha pega não-pega, pega não-pega... Pegou. Ele sentiu como se fosse um empurrão pelas costas, tropeçou a caiu esparramado na lama. Sentiu o bafo quente no seu rosto e o seu peso em cima dele. Nesta hora, ele sabia que ia morrer. Não era assombração, o bicho era real, podia sentir pelo hálito faminto dele. Começou a rezar baixinho e a pedir perdão pelos seus pecados, quando sentiu uma lambida no seu rosto.
- Ai, meu Deus! Ela vai me comer devagarzinho! Pensou ele, fechando ainda mais os olhos para não ver o tamanho da boca do seu agressor.
Esperou pela primeira mordida já sentindo a sua dor, quando recebeu outra lambida no rosto. Abriu os olhos e viu um bicho preto em cima dele abanando o rabo. Abanando o rabo? Então...
- Sai de cima de mim, cachorro. Você quase me matou de medo, seu desgraçado! Vou lhe dar uma surra por isso! Eu bem que podia ter imaginado que era você quando não entrou na lama atrás de mim!
 Dizendo isso, com as poucas forças que lhe restavam empurrou o cachorro de cima dele e levantou-se. Ele não havia lembrado que o seu cão fiel detestava sujar os pés e por isso sempre evitava andar pela estrada, preferia seguir quem quer que fosse sempre pelo aceiro do mato, onde certamente seus pés estavam protegidos. Ele, coitado, sem nada entender, pulava de alegria em suas pernas, lambia seu rosto, as suas mãos, abanava o rabo e dava pequenos grunhidos de satisfação por encontrar o seu dono. A assombração, agora vista sem medo, era o seu cachorro batizado carinhosamente de Secretário. Ele não tinha, portanto, o tamanho nem a cor e nem a aparência imaginados. O medo, porém, tinha-lhe dado formas inimagináveis.


 Texto: Marta Adalgisa Nuvens




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