terça-feira, 25 de outubro de 2011

O campeonato

 
 
        A praça estava tomada pela multidão que se acotovelava a procura de um melhor ângulo de visualização. Gente da cidade, dos arredores, das cidades próximas, todos estavam ali para assistir ao mais famoso campeonato das redondezas. Viam-se pessoas sozinhas, acompanhadas, comprando ou vendendo comidas, bebidas ou brinquedos nas barraquinhas improvisadas. Faziam isso por necessidade ou compulsão, não importava. Todos queriam participar da festa de uma maneira ou de outra, afinal estavam ali para a diversão. Ora com a versatilidade e criatividade dos concorrentes, ora procurando uma paquera, ora empanturrando-se de guloseimas e coisas inúteis, mas que os vendedores gritavam as mil e uma utilidades de cada uma delas.
Era o campeonato de mentiras mais conhecido da região. Apresentavam-se pessoas de ambos os sexos com o intuito de contar ao público uma grande mentira e ao júri, formado pelos mentirosos mais famosos da cidade, caberia a incumbência de escolher as três melhores interpretações. O prêmio era irrisório, mas a fama era comparada a de um artista global.
Após a apresentação de todos, foi escolhida a primeira finalista. Tratava-se de uma pescaria contada por Pedro Bastião. Ele disse que um amigo lhe havia dito que foi pescar em um riacho que passava ali perto e pescou um peixe tão grande que não coube na caminhonete que ele dirigia. E olha que era uma quatro por quatro e o tal riacho nem tinha tanta água assim! O tal peixe quebrou a sua vara de pescar e puxou quase toda a sua linha. A sorte era que ele não estava no barco, estava na margem e tinha uma árvore ali perto. Ele, com uma velocidade invejável, conseguiu passar o restante da linha no troco da árvore, amarrar na traseira do carro, possibilitando assim puxá-lo para fora da água. Então ele disse que ouviu atentamente a mentira do amigo e, para não passar por baixo, calmamente argumentou:
- Isso é nada compadre, eu fui pescar outro dia naquele mesmo rio e pesquei uma lamparina acesa.
E o compadre respondeu:
- Uma lamparina acessa saindo da água? Compadre isso é mentira!
E ele respondeu para as risadas e aplausos dos presentes:
- Posso apagar a minha lamparina, compadre, mas você diminui o tamanho do seu peixe!
A segunda classificada foi contada por Moacir Padim. Ele contou que quando era mais novo foi vaqueiro por uns tempos. E que uma vez foi a uma serra ali perto procurar uma novilha do seu patrão que tinha sumido. Foi no melhor cavalo da fazenda, levou o cachorro mais farejador, mas sabia que não seria tão difícil encontrá-la porque ela estava com chocalho. E de fato, logo a encontrou. Mas o estranho foi que, quando a localizou ela sentiu a sua presença, correu em direção ao centro da floresta onde o mato era mais denso e ele teve que correr atrás dela. Na corrida, de repente tudo ficou escuro. O dia claro se transformou em noite. Não se conseguia ver nada. O cavalo correu por cerca de uma hora seguindo a vaca, guiado apenas pelo som do seu chocalho, pois a escuridão era total. E assim, como escureceu a claridade voltou de repente também. Os animais ofuscados pela brusca mudança de luminosidade quase se precipitaram abismo abaixo. Após encurralar o animal na beira do precipício, ele foi entender o que tinha acontecido. Sentiu que estava todo molhado de uma substância pegajosa. Não só ele, mas todos. O cavalo, o cachorro e a vaca. Passou o dedo, colocou na boca e percebeu que era doce. Era mel. Olhando para trás, ele notou uma enorme colméia. Aí foi que ele percebeu o que havia corrido. Eles haviam corrido por mais de uma hora por dentro dela, numa carreira desenfreada; ele montado no cavalo seguindo uma vaca e sendo seguido por um cachorro.
A platéia delirava a cada narrativa. Aplaudia, assobiava, mas ao recomeçar outra história ela ficava muda. Não se ouvia o menor ruído.
A terceira mentira da noite foi contada por Chico de Gorete. Segundo ele, no campo de futebol da cidade conhecido como Ferreirão, numa tarde de domingo dessas, estavam decidindo um torneio regional. Os dois times eram: um time local de nome Itarema e o outro time da cidade vizinha cujo nome era Ribeira. Como a partida saiu empate em zero a zero no seu tempo normal, recorreu-se a cobrança de pênaltis para que se chegasse a um campeão. Chutes alternados de um lado e de outro e a bola não entrava, o gol não saia. Até que chegou a vez da cobrança do atleta do time da casa conhecido por Gabiraba. Ele colocou a bola na marca, tomou uma grande distância e fez carreira para o chute. A bola de três dedos saiu zunindo em direção do gol. O goleiro, coitado, tentou defender, mas felizmente não conseguiu.  Poderia ter sido pior, disseram depois. Ela passou por entre os seus dedos e furou a rede. As pessoas que estavam atrás do gol percebendo a velocidade que ela vinha, sincronicamente se agacharam e ela bateu numa estaca da cerca de arame que delimitava o campo, lançou-se sobre as casas, abriu um buraco na parede do muro daquela mais próxima, resvalou no tronco de uma goiabeira derrubando- lhe todas as folhas e frutos, atravessou o quintal, entrou na casa derrubando tudo o que encontrava pela frente e só foi parar do outro lado da rua, a cerca de uns dois mil metros, dentro do caminhão de Chiquita após estilhaçar o vidro do parabrisas. Todos imaginavam a trajetória da bola e o rastro de destruição da mesma quando ele finalizou dizendo que a pancada no pé de goiaba foi tão forte que ele perdeu a noção de que espécie de fruta era. E, desde antão, todo ano essa fruteira botava frutos diferentes. Já se chegou a colher dele manga, caju, limão e mais algumas variedades.
Ele quase não conseguiu terminar com os aplausos e as risadas dos presentes e por unanimidade a sua história foi a vencedora desse ano. Mesmo assim, sem que ninguém acreditasse, ele jurava que foi verdade e convidava a todos para conhecer o velho pé de goiaba que neste ano, coincidentemente estava com a safra de goiaba mesmo.  O que era segundo ele raro, pois no ano que vem não se saberia que fruta seria.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Um sorriso

            Foi numa manhã como essa, cheia de sol e de calor que tudo aconteceu. Estava fazendo a minha caminhada matinal, adoro caminhar. Organizo as gavetas dos meus pensamentos, formulo agendas, reforço lembranças e nesse dia lamentava o fracasso do meu casamento e visualizava por um bom tempo a solidão que chegaria sorrateira, aproveitando-se do meu momento de fragilidade. Nada a fazer, mas muita coisa a lamentar. O anjinho do ombro esquerdo teimava com o diabinho do ombro direito me cobrando coisas que não fiz:
            - E se você tivesse feito isso.
            - E se você tivesse feito aquilo nada disso estaria acontecendo.
            Pessoas passavam por mim, a maioria correndo. Dando uma pausa a minha amargura, pensava que a maioria delas não fazia aquilo por prazer, como eu na minha caminhada. Fazia por necessidade de se afirmar, de mostrar que são capazes de correr vários quilômetros mesmo naquela idade tão parecida com a minha em que o corpo prefere apenas caminhar. Não gosto de correr. Não gosto da pressa do chegar logo. Irrita-me. Gosto de andar. Observar coisas, pessoas, paisagens, sentir cheiros, sentir o vento nos meus cabelos grisalhos, ouvir pedaços de conversas das pessoas que passam e juntá-los com as minhas deduções malucas, criando boas histórias. A maioria alegre. Gosto da alegria. A alegria é contagiosa basta que a espalhemos.
Foi nesse momento que senti um esbarrão. Olhei irritado para a pessoa que havia feito isso e dei de cara com o mais belo sorriso da minha vida. Sorriso de desculpa, sorriso que me trouxe à tona dos meus pensamentos tristes. Fiquei paralisado olhando aquela fantástica aparição. Um sorriso que iluminou toda a estrada, um olhar meigo, o cabelo desgrenhado pela ação do vento que mostrava a ação do tempo e nem por isso lhe tirava a beleza; uma correntinha no pescoço completava o quadro. E eu ali, parado, sem ter o que dizer, sem saber o que fazer além de olhar e me encantar. Quando você foi embora. Virou-se para olhar-me várias vezes e na última acenou.
            Quando voltei a mim e vi que você havia desaparecido, corri ao seu encalço. Esqueci que não gostava de correr. E corri vários metros que mais me pareceram quilômetros e não mais lhe encontrei. Como lamentei depois do ocorrido não ter lhe falado, não ter lhe escutado, não ter iniciado alguma coisa, de alguma forma que não lhe permitisse sumir. De nada adianta agora fazer o mesmo percurso olhando todos os rostos na esperança de encontrar no meio deles o seu. Agora não adianta mais. Fico pensando na felicidade que eu poderia ter tido e deixei escapar naquela manhã cheia de sol e de calor.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

sábado, 13 de agosto de 2011

Açude Quixeramobim

Açude Quixeramobim é um açude do Ceará, localizado em Quixeramobim. Está construído no leito do Rio Quixeramobim que faz parte da bacia hidrográfica do Rio Banabuiú. Foi construído pelo DNOCS e concluído no ano de 1960. Possui a capacidade de 54.000.000 m³, sendo a principal fonte de abastecimento hídrico da cidade homônima.
Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Aparências

            “As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”, cantava Elis Regina décadas atrás. Nunca tinha reparado nisso com tanta atenção. Preferia aquele outro ditado que diz: “Onde há fumaça, há fogo”. Mas basta sentir na pele, basta acontecer conosco para que prestemos mais atenção. As aparências ao meu respeito lhe enganam. Você não diz nada, mas pelo nível de conhecimento que temos um do outro sei o que você pensa de mim.
Sei que sou irreverente, mas tenho sentimentos como todos os outros. Apenas diminuo “as aparências” com um sorriso, uma piada, um comportamento como se não tivesse me importado. Mas me importei.
Sei que aparentemente chorei pouco pelo fim do nosso relacionamento. Aparentemente. Pois choro em pequenas doses a cada lembrança, a cada manhã de domingo, a cada música, a cada cheiro, a cada piada acompanhada de uma risada gostosa. Sou diferente das pessoas que choram tudo e depois se calam.
Sei que deixei demonstrar a minha indiferença quando você me contou do seu novo amor. Até me propus a compartilhar da sua alegria que sempre um novo amor trás demonstrado uma amizade sincera, madura, sólida. Mas a indiferença era aparente. Morri de tristeza por ser substituída tão rapidamente e por uma pessoa, como diz você, carinhosa, companheira, inteligente, gentil, solidária, que gosta de você acima de qualquer dúvida e com mais outros predicados que certamente excedem aos meus.
Sei que quando estivemos juntos tentei realmente ser tudo isso, mas “as aparências” não me deixaram ser. E de tanto segui-las, terminei sendo ou fazendo o que, a julgar pelas aparências, eu não faria.
Sei que depois de tudo agora procuro não mais estar sozinha. Procuro preencher aquele vazio que a sua ausência deixou na minha vida. Após várias tentativas, as aparências revelam que sou uma pessoa insegura, que não sabe o que quer, até um pouco irresponsável e volúvel. Mas são apenas aparências.  
No fundo procuro uma pessoa que pareça com você. Que tenha aquela conversa interessante de horas a fio sem que nos cansássemos ou nos calássemos. Procuro uma pessoa com aquele humor que você tem em ouvir, contar as piadas mais tolas possíveis e depois gargalharmos das nossas tolices. Procuro uma pessoa com aquele jeito de falar que só acontecia comigo, procuro uma pessoa que seja amiga como você, solidária como você, honesta como você, sensata como você, com o seu caráter, com... Acho que procuro você.
Será possível encontrar você em outras pessoas ou pelo menos encontrar nelas aquelas suas qualidades que mais me fascinam? Será possível não lhe comparar com as pessoas com as quais tento me aproximar e depois decepcionada por não ter nada de você vou embora ainda mais triste? Daria certo, mesmo que essa pessoa exista amá-la porque amo você?
Não sei. Só sei que não me julgue pelas aparências. Elas são o meu escudo de sobrevivência para burlar o vazio, a saudade, a vontade de estar perto de você.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

domingo, 26 de junho de 2011

A mulher que tocava

Eu vi a mulher que tocava e tocava também os nossos corações, a nossa sensibilidade, a nossa alma. Ela não era grande nem poderosa, não ostentava riquezas nem arrogância; pelo contrário, o seu rosto era sereno, o seu corpo franzino de uma mulher já madura, a sua aparência simplificada por uma saia comprida de algodão e uma camiseta verde, mas ela tinha o poder de domar os nossos corações e as nossas emoções e, ao mesmo tempo, fazer parecer que a música fosse simples, o autor fosse comum e tocar piano fosse fácil.
            Eu vi a mulher que encantava tocando a música encantada. Ou era a música que era encantada e encantava a mulher? Difícil separar as duas. Ambas se completavam. A mulher se apossou da música que, com dedos ágeis ao piano, executava com maestria e simplicidade seus acordes sonoros encantados. Ao mesmo tempo, observando a cena, aquilo era pouco. Estava mais para uma mulher possuída pela música, embriagada pela música e esta lhe servia apenas de instrumento para que ela tomasse corpo, tomasse forma para que os seus sons hipnotizassem a todos nós.
            Um teatro, um placo, uma luz de holofote iluminando uma mulher sentada ao piano, tocando a Sonata 17ª de Beethoven. Essa iluminação não importava, nem servia para ela. Ela estava de olhos fechados, cabeça ligeiramente pendida para o lado esquerdo, tomada pela música que lhe saía pelos dedos, pela respiração pelo corpo, pela alma.  A iluminação era para nós da platéia que no momento não saberíamos separar música e mulher. Uma completava a outra. Se fechássemos os nossos olhos também deixaríamos escapar esse momento tão sincronicamente perfeito.
            E música e mulher seguiram o caminho. Ora com acordes suaves, delicados quase imperceptíveis, ora os acordem tornava-se intensos, fortes, como uma tempestade de notas musicais.   
            A platéia hipnotizada assistia a tudo no mais absoluto silêncio, como em êxtase para explodir em gozo na forma de aplausos após a apresentação.  E foi realmente essa sensação que sentimos quando a música emudeceu e os expectadores se ergueram como num ato ensaiado para aplaudir de pé essa obra prima. Mas não era apenas o aplauso em si. Estávamos maravilhados, extasiados, tontos de tanto prazer, trêmulos, olhos nadando em lágrimas de tanta emoção, acreditando que aquele momento foi eternizado em nossas mentes, pois momentos assim de tanta beleza e sincronia são demasiadamente raros.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens
Um tributo a pianista portuguesa Maria João Pires.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Ausência


Esta manhã chuvosa... esta falta de sono... este inquietamento na cama. Acho meio tolo procurar uma causa para isso ou paliativos para continuar dormindo. Preciso revelar quem gosta desse barulho de chuva no telhado quando prolongávamos um pouco mais a noite que findava? Este cheiro de terra molhada há tempos castigada pelo sol? Essa brisa fria vinda do mar batendo nas janelas entreabertas movimentando as cortinas e deixando entrar um pouco de claridade? O canto do bem-te-vi, meu vizinho brincando na chuva? Não. Não será necessário. Devo chamar de insônia a minha falta de sono? Ou o termo certo seria saudade? A ausência da sua presença nesses momentos tantas vezes vividos. O vazio ao meu lado privando-me do cheiro dos seus cabelos, da busca das mãos procurando a presença do outro ainda de olhos fechados, para não despertar e não quebrar o encanto do momento. Dos suspiros, quase gemidos por estar na hora certa, no lugar certo com a pessoa certa. Do chegado mais perto buscando um pouco mais de calor, de contato. Do esquecimento do mundo lá de fora e das muitas pessoas que nele vivem. O trabalho que teríamos que fazer, os problemas que teríamos de enfrentar, os contatos que teríamos que manter, as providências que teríamos que tomar... a vida que teria que ser retomada, mas a chuva, a manhã, a  companhia e a vontade disso tudo não deixavam... A felicidade não deixava. Precisaria de um motivo mais importante para os atrasos, para o decorrer de um dia tranquilo e feliz? E quando, finalmente a preguiça ia embora, a vontade do aconchego se quebrava, nossos olhares se cruzavam e não precisávamos de palavras. Ele nos dizia tudo.
            Como não lembrar tudo isso em situações tão parecidas? Como esquecer situações vividas tão imensamente felizes? Como esquecer a sua ausência se a sua presença ainda está tão viva em mim? Como conseguir dormir com tantas lembranças? Como continuar vivendo sem esse amor e sem essa saudade? Impossível. Eles já se tornaram crônicos. Agora, é alimentar a esperança de transformar esse passado em presente novamente. E, como num conto de fadas: Sermos felizes para sempre.


Texto: Marta Adalgisa Nuvens

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A Botija




Marina morava há anos na casa da sua irmã na cidade. No começo, o motivo eram os estudos; pois seus pais moravam em uma chácara distante. E, como era sua irmã, tinha duas crianças pequenas precisando de companhia e cuidados, trocavam os favores. Mas, o tempo passou, as crianças cresceram, ela se formou, arrumou um emprego e ficou. Adotou a família da irmã como a dela e a sua irmã a adotou como uma filha mais velha. E viviam assim; uma vida simples do interior, cheia de dificuldades, mas cheia também de harmonia e bom humor. Mesmo mulher já feita, Marina tinha muito medo de fantasmas. Vivia sonhando com eles, anotando números que lhes diziam durante o sonho para jogar na loteria; ouvia chiados, passos entrando casa adentro, seu nome chamado à porta e quando ia ver não era ninguém... Uma verdadeira obsessão! Por esta razão, ela era o motivo de gozação da família, principalmente do seu cunhado que vivia a fazer-lhe encomendas impossíveis, quando sonhasse com esse ou aquele fantasma.
Uma manhã, a medrosa acordara com mais uma história. Essa agora era verdadeira, tinha que ser. O sonho foi real demais. Ela sonhara que um parente seu, em vida acima de qualquer suspeita, tinha lhe aparecido para contar sobre um baú cheio de papéis e moedas de ouro que havia sido enterrado durante as guerras acontecidas no século anterior naquela cidade. O fantasma mostrava o lugar, a profundidade que ela deveria cavar e ainda abria a botija para mostrar-lhe o que havia dentro. Ele só fazia uma exigência: que os papéis fossem doados à igreja. Ela estava eufórica. Com a possibilidade de ficar rica nem havia pensando nos obstáculos que poderia enfrentar desempenhando tal tarefa.
 O seu cunhado, como sempre brincalhão, fez uma cara de sério e prometeu ajudá-la a organizar tudo para a noite da próxima sexta-feira. Pediu para ela providenciar: água benta para molhar a urna assim que ela fosse desenterrada, um crucifixo caso o demônio aparecesse ou mandasse um representante, velas também bentas para iluminar o local e para espantar algum ser das trevas mal avisado que andasse vagando por aqueles caminhos, um terço que deveria ser rezado antes de se iniciarem os trabalhos e o material para fazer a escavação. Ela anotou tudo sem perceber a cara de gozação dele, contou ao namorado e à mãe dele que lhe emprestou os apetrechos de espantar demônios. Para não ir sozinha nessa aventura mal- assombrada, contava com o namorado para fazer a escavação e com o seu pai para um maior apoio na tarefa de afastar os maus espíritos, caso eles aparecessem.
E lá se foram eles, meia-noite em ponto, dar início a descoberta da arca de ouro. Tudo foi feito como o programado. Velas acesas, terço rezado, começaram a escavação. Ela estava morta de medo. Medo que aumentava cada vez que o vento as apagava as velas e seu pai atribuía isso a algum fantasma brincalhão que assoprava só para deixá-la ainda mais nervosa. E ele até dava-lhes nomes olhando na direção do vento, brigava com eles e lhes avisava do medo que a filha sentia. Até ali ela não percebera que, o que para ela era uma coisa muito séria, para os outros era uma brincadeira. Seu pai e seu namorado se divertiam com o estado em que ela ficava a cada morcego que passava voando com seus vôos rasantes, a cada chiado no mato causado por algum animal, a cada terra que escorregava para dentro do buraco já cavado. A gozação só não foi maior por causa da sua cara de tristeza e decepção quando, mesmo ultrapassada a profundidade do buraco estabelecida no sonho, nada foi encontrado na escavação.
O retorno para casa foi silencioso. Embora com muita vontade de rir, os dois respeitaram a decepção dela. Ela estava arrasada. Afinal, foi uma semana organizando e acreditando nisso. Planos já feitos... Tudo acabado. Agora era só tristeza além de muita explicação aos curiosos e muita chacota dos amigos. Ela desceu do carro, abriu a porta que dá acesso à área e ao jardim de inverno, atravessou-os e quando girou a maçaneta da segunda porta... Buuummm! Uma grande explosão, coisas caindo do céu na sua cabeça fazendo um barulho ensurdecedor, até que uma coisa enorme caiu aos seus pés. É apenas do que ela se lembra. O medo e a adrenalina da aventura noturna, com mais isso que ela não esperava e não conseguia entender o que seria, causaram um branco na sua memória. Quando ela se deu conta já estava dentro de casa, na sala escura, como num desenho animado, colada à parede. Todos os pensamentos fugiram, não sabia como se mexer. Sentia a respiração ofegante, o coração disparado, o suor cobrindo-lhe o rosto... E eis que de repente, ouviu uma risadinha vinda do quarto, semelhante a da sua irmã, seguida das palavras:
- Acho que você matou ela.
E passos correram ao seu encontro para ver o motivo do silêncio. Já que, pela situação, pelo horário e pelo barulho eram esperados muitos gritos e muita correria. Quando ambos, cunhado e irmã, viram o seu estado, precipitaram-se sobre ela, fazendo-a sentar e tomar água com açúcar. Depois de algum tempo de cuidados e mimos por parte dos culpados, com o semblante já bem menos debilitado, ela foi voltando ao normal. Pedindo muitas desculpas, a sua irmã explicou que seria apenas uma brincadeira. Eles haviam amarrado uma cesta em cima da parede com várias latas vazias que deveriam cair assim que ela tocasse na maçaneta da porta de entrada. Por algum motivo, a corda emperrou e a cesta caiu aos seus pés quando ela já estava na segunda porta.
Para o bem de todos, após uma noite tão frustrante e assombrada, Marina escapou dessa aventura sem nenhuma sequela.

 
 Texto: Marta Adalgisa Nuvens

quarta-feira, 2 de março de 2011

Incoerência


De repente, a certeza ficou duvida. O autocontrole se vestiu de medo. O caminho trilhado há tanto tempo agora é uma vereda na qual posso me perder porque não sei mais a direção.
As palavras do sábio ouvidas através dos ecos da mente inquietam a minha quietude e me transportam a uma vida que não é minha.
De repente, a pessoa que sempre julguei ser nunca existiu. Fui uma personagem imaginada pela minha mente inteligente e criativa.
A realidade apareceu com toda força dizendo-me que somos aquilo que somos e não aquilo que pensamos ser. E eu me tinha pensado diferente do que sou. Aquela velha frase de alguém que se viu como me vejo hoje é coerente: somos aquilo que os outros acham  de nós.
Somos o achismo dos outros, somos o julgamento dos outros, somos a nossa fantasia de ser e nunca somos como realmente somos.
Gostamos demais de nós mesmos para não maquiarmos os nossos defeitos e para acreditar e propagar que somos melhores do que somos.
Guiada pelo som da consciência, dou uma olhada no passado e tenho agora outra visão de mim. Amores fracassados, amigos resumidos, família dispersada pela ação do tempo e da rotina.
Passei a vida entretida na sobrevivência do corpo e da alma e não na ascensão deles.
Tornei-me uma pessoa cheia de defeitos que via apenas qualidades, achando-me isso e aquilo. Vejo agora o que os outros viram em mim e se afastaram.
E novas pessoas que me conhecem acham-me aquilo que julgam de mim apenas pela aparência e igualmente se afastam.
O que eu pensei de mim não era verdade. A minha autoestima bloqueou a minha evolução como pessoa.
Agora, quem sabe, sabendo mais sobre mim, ou melhor, me vendo como realmente sou ainda haja tempo de recomeçar. Se é que realmente quero ser como os outros me julgam ser e não como me julgo a mim mesma.
Continuarei perdida nesse abismo imaginário acostumada a mim sendo para os outros o conceito que eles têm de mim.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O jogo de futebol


            José Simplício era o seu nome, mas Zé Briguilo era como o chamavam. Exímio jogador de futebol, ponta esquerda driblador que infernizava a defesa e a área dos adversários. Era disputadíssimo pelos times que se formavam nos rachas do Ferreirão, campo da sua cidade. Além disso, não levava desaforo pra casa. Desentendimento dentro de campo ou fora dele, ele encarava. Por ser pequeno e magrinho era rápido com as pernas e com a língua. Dava rasteira tão bem como xingava a mãe do seu opositor e toda a geração de mães daqueles que presenciavam a cena. Mas era boa gente. Embora não trabalhasse por causa da preguiça era muito honesto. Nunca pegava no alheio. Gostava de ficar em rodas de bares tomando pinga se aparecesse alguém que pagasse. E nunca faltava um pagador. Todos o queriam no seu time e tratavam de agradá-lo. Contador de vantagem que só. Imaginava-se um dia jogando com Pelé no mesmo time e de preferência, no Santos time pelo qual torcia por causa do seu ídolo.
            Um dia, o gerente do banco da cidade organizou um jogo beneficente em prol das vítimas da enchente das chuvas que ainda estavam por vir (tudo era motivo para se jogar bola) e convidou um time da cidade vizinha. Apesar de ser um amistoso sabia-se da rivalidade das duas cidades e, por esse motivo, o próprio gerente, por causa da sua influência e amizades na região, seria o árbitro da partida.
            Propagandas feitas e amplamente divulgadas chegou o dia do jogo e, para festa ser ainda maior, era dia dos pais, final de tarde com casa cheia, banda de música tocando enquanto aguardava a execução do hino nacional se misturando com o barulho dos tambores da charanga. Toda a cidade estava lá sem contar com vários paus-de-arara cheios de torcedores do time adversário; homens, mulheres, crianças, bandeiras agitadas na arquibancada, vendedores de tudo passando por entre as torcidas oferecendo o seu produto. Enfim uma verdadeira tarde de futebol.
            Tudo pronto começou a partida. Como era de se esperar, Zé Briguilo comia a bola e irritava os adversários que procuravam a todo custo manter uma marcação colada sobre ele na busca de evitar o primeiro gol. Jogo de festa geralmente sai empate, mas esse era diferente; tinha a rivalidade entre os times e entre as torcidas. De repente, uma bola dividida e falta na ponta esquerda, justo em cima do craque que, em cobrança perfeita, fez o gol. Aplausos e vivas de um lado, xingamento e cara feia do outro, e o jogo continuava. No finalzinho da partida, não se sabe se por causa da pressão dos visitantes ou não, pênalti para o time adversário. O Juiz apitou está apitado. Não adiantaram os protestos dos jogadores e nem da torcida local. Era pênalti e estava acabado.
            Antes que a cobrança fosse feita os jogadores liderados pelo artilheiro cercaram o árbitro e no empurra-empurra começou a confusão. Outros jogadores menos esquentados o tentavam proteger, mas Zé Briguilo irritado comandava o espetáculo. Nada adiantou. De repente, via-se o juiz correndo na frente com o apito na mão, atrás dele muitos jogadores querendo pegá-lo e ele dando voltas no campo tentando driblar os atletas revoltados que queriam lhe dar umas boas bofetadas. A polícia, que se resumia em quatro soldados, olhava a cena e não sabia para onde ir, porque se dentro de campo a coisa estava feia, fora dele estava pior. As torcidas se encontraram e a confusão se generalizou. Era gente impedida pela multidão tentando em vão correr, sair da zona de perigo, enquanto isso, tabefes, chineladas, murros, puxões de cabelos, chutes, os mastro das bandeiras subiam e desciam em meio à multidão e cada um se protegia como podia.  A essa altura, até cuspida na cara do outro valia.
            Em meio à agonia e com medo de ser pego, o gerente do banco viu um clarão de um lado do campo e correu naquela direção, mas quando chegou perto viu que era um beco sem saída. Ali terminava o terreno do Ferreirão e tinha uma cerca bem resistente de arame farpado. Sem vacilar ele mergulhou nela tentando acertar o espaço entre os dois fios. Do jeito que a turma de jogadores vinha pega-não-pega atrás dele, era melhor ficar todo arranhado do que sofrer a humilhação de levar uma boa surra; ainda mais alguém da sua importância social. Acertou, isto é, quase acertou. A metade do corpo passou muito apertada e saiu do outro lado toda arranhada e sangrando, mas a outra metade não. O elástico do seu short ficou preso na roseta do arame e ele ficou enganchado. Da cintura para baixo ficou do outro lado, na zona de conflito e aí o pau cantou. Até que ele conseguisse se desvencilhar do arame a das agressões já estava todo cheio de hematomas.
            Na torcida tudo foi voltando ao normal depois que a polícia deu alguns tiros para cima. Foi um corre-corre, gente pisoteada, outros se aventuraram como o juiz, na cerca de arame, mas o tumulto foi contornado. Agora era socorrer os feridos, orientar os bêbados no caminho de casa e ver os estragos materias causados pelas pedradas, vindas não se sabe de onde, que atingiram os carros estacionados ali perto.
            No dia seguinte, foi-se ver o resultado do jogo beneficente. Entre mortos e feridos, todos escaparam. A maioria saiu ilesa, alguns precisando de consolo, outros de curativos e vários foram para o hospital. Inclusive o nosso gerente que depois de medicado, pediu uma licença do trabalho e depois a transferência da cidade, dizem que com vergonha da sova que levou. Depois desse dia, os jogos continuaram a acontecer e o melhor jogador que já se viu na região ainda atuou por muitos anos, fez muitos gols e deu muitas alegrias a torcida, mas nunca mais se ouviu falar numa partida de futebol como aquela.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens