quinta-feira, 18 de abril de 2013

Herança de vovó



         Eu fiquei reparando no velório da minha avó. Primeiro no mundo que eu vejo sem defunto, sem ninguém chorando e se sem gabar o falecido. Nem a turma da calçada que, por falta de cadeira, ficava “de coca” fumando e falando da vida alheia. Nem Maria de Bia que chorava em baldes no enterro de gente conhecida ou não, botava uma lágrima.  Era chorava tanto e com tanto exagero que, às vezes, o dono do defunto a mandava se calar. Todos comiam, bebiam chá ou café conversando “acontecências” e nada de tristeza. Não tinham sorrisos, mas lágrimas que eram esperadas, nada. Nem da minha mãe, que, embora estivesse triste não conseguia chorar.
Todo morto que se preza, vira bom; as suas qualidades correm de boca em boca, os elogios, os exageros, verdadeiros ou não. Mas com ela, não. Ninguém tinha um elogio sequer. Nem eu. O mais próximo que cheguei, foi a um: “Ela era excêntrica, mas gostava dela”. E gostava mesmo. Foi através do uso da ironia gratuita, que ela espalhava para todo mundo, que descobri que poderia ser uma boa cozinheira. Ela dizia que quando eu caprichava, quando a comida saia direitinho, saia sem gosto, com gosto de palha.
- Lá vai!... a menina passa o dia na cozinha e a comida sai com gosto de nada! Era o que ela dizia, mas comia e eu tomava isso como um elogio. Se estivesse tão ruim assim, ninguém encarava, nem ela.
Andando pela sala, cumprimentando as pessoas, o que eu ouvia era:
- Sua avó era encrenqueira, brigou comigo duas vezes, mas Deus a tenha.
- Ela era uma falsa, desculpe a franqueza, mas não lhe queria mal.
- Ô mulher “ispridada” essa sua avó, num gostava dela, mas já de vocês...
E assim foi manhã a fora. Qualidades poucas e defeitos muitos, mas todos faziam questão de registrar a sua fala e a sua presença. Talvez se o cadáver estivesse presente, fosse diferente, houvesse respeito. Mas, como ela queria ser cremada e aqui, no nosso interior, não tenha disso, ficou mesmo em Salvador, cidade que escolheu para morar. Quem sabe lá ela tivesse amigos... pelo menos se sabia, da sua vizinha. Amizade, amizade não sei se era, mas elas se entendiam. Porque aqui... ninguém.
Com a desculpa da solidariedade, os vizinhos vieram todos nos dar os pêsames, mas, pesar nenhum foi observado neles. Vieram mesmo foi filar café da manhã, matar a metade do dia de trabalho, falar da vida alheia... inclusive da dela, coitada! Diziam até que era melhor a cremação mesmo, assim se queimava o veneno junto com a cobra. Veneno que agora ela não podia mais usar pra se defender.
         E o velório, se é que se pode chamar assim, durou pouco. Feitas as obrigações dos “solidários”, a vida voltou ao normal. Eu ao meu restaurante de comidas baianas que, por sinal, vivia cheio; e foi incentivado (sem que ela soubesse) por ela que me mandava sempre temperos e mais temperos para temperar a minha comida sem graça. Por conta da sua amizade com a vizinha, nada mudou. Ela continuou a me mandar os temperos da Bahia, como fazia vovó, e esse serviço de troca de receitas e de sabores não acabou. Diminuiu, é claro, mas sempre que surgia uma novidade na culinária baiana ou cearense a troca de idéias e de quindins era feita.
         E a última remessa chegou cheia de guloseimas. Pimenta de todas as cores para todos os tipos de carne, farinhas de todas as texturas, para todos os tipos de farofas e pirões e, entre elas, um pote de uma massa fina e acinzentada. Como era de costume, misturei alguns ingredientes juntos a esses e fui usando a agradando aos fregueses que a cada dia aumentavam.
         Um belo dia, entre os potes de conservas e temperos que acabaram de chegar, havia um envelope. Abri na certeza de que era mais uma receita nova. Mas, para a minha surpresa, era o atestado de óbito da minha avó e a explicação de que: aquele pote cinza que veio na remessa passada eram as cinzas dela que, em vida, ela queria que fossem espalhadas no sítio onde ela nasceu.
         Fiquei pasma, olhos arregalados, cor de defunto, pernas bambas, soltei no chão o envelope que acabara de ler, sentei na cadeira mais próxima. O remorso me deu um soco no estômago e um branco no juízo. Fiquei sem ar, sem fala. As pessoas perceberam e vieram ao meu encontro, e eu só conseguia dizer baixinho em meio às lágrimas:
         - Meu Deus! Comi a minha avó!

Texto: Marta Adalgisa Nuvens