quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O velório


              Estávamos brincando em frente de casa com os meninos da rua, como fazíamos todas as noites, quando ouvimos a minha mãe chorando. Entramos correndo aflitas e percebemos que ela arrumava apressadamente algumas coisas numa sacola grande, lamentando o que acabara de acontecer. Eu e a minha irmã Baiá nos entreolhamos sem nada entender e perguntamos:
            - O que aconteceu mãinha? Pra onde a senhora vai com essa sacola uma hora dessas?
            - Vou pra casa de comadre Ana. Ela acaba de falecer, tadinha! Uma pessoa tão nova... tão boa... tão prestativa. É assim mesmo... Deus chama primeiro os bons pra perto dele. Gente ruim? Morre tão cedo! Mas uma pessoa como a minha comadre, vai logo pro céu. Dizia ela acabando de arrumar a sacola com mantimentos para o velório.
            Cidade pequena é assim. Quando morre alguém conhecido e todos se conhecem, a cidade inteira vai para casa do defunto onde acontece o velório. Aqueles mais amigos levam ainda o que tiver na geladeira para servir às visitas durante a noite. Eles se distribuem quase sempre da seguinte maneira: Os homens ficam conversando na calçada ou no terreiro contando causos, fumando e tomando café. As mulheres mais chegadas à família ficam na cozinha fazendo café ou chá para servir com biscoitos e ainda preparando panelões de sopa e canja de galinha para os mais famintos aguentarem a noite de vigília.  Como a finada não pode ficar sozinha, porque segundo os mais velhos, defunto deixado sozinho atrai a atenção do demo, aquelas que têm menos intimidade ficam na sala junto com a família fingindo que rezam e observando a reação dos que entram para olhar a falecida e comentar depois. Um prato cheio para fofocas do outro dia. Tudo de valor tem que ser guardado porque tem aqueles que não são nem uma coisa nem outra e vão pra comer e surrupiar alguma coisa que esteja de fácil acesso. Criança não pode ir sozinha. Geralmente ficam em casa cuidando uns dos outros enquanto os pais vão prestar solidariedade à família do morto. Àquelas que vão, passam a noite cochilando pelos cantos porque as cadeiras são para as pessoas mais velhas ou então comendo as guloseimas que são preparadas no decorrer da  noite.
            Eu e minha irmã não fomos. A nossa mãe nos proibiu porque tínhamos medo de fantasmas. Por isso, nosso pai ficou conosco. Quando dormíssemos, como era de costume, ele ia e nos deixaria trancadas e sozinhas. Não tinha perigo de acordarmos sempre dava certo.
            Quando acordamos na manhã seguinte, a nossa mãe já estava em casa preparando o café e nos alertava para que fôssemos para o enterro. Aula não teria. D. Ana havia falecido e todos na cidade estavam tristes. Enquanto nos arrumávamos, ouvíamos uma conversa que vinha da cozinha. Era a voz da minha mãe que dizia:
            - Ave Maria, meu Deus é até pecado isso. Um homem tão bem de vida, com pena de gastar dinheiro com a irmã.
            E a voz do meu pai respondia:
            - Êh, minha velha, a gente só vale alguma coisa enquanto está vivo. Depois? Não prestamos mais pra nada. Vai ver, quando chegar a sua hora, ele vai poder levar alguma riqueza dentro do caixão! Ingrato! Isso é muita ingratidão!
            - O que aconteceu, mãinha? Perguntou a minha irmã.
            - Nada... isso não é assunto pra criança. Respondeu ela meio irritada.
            - E se avie e avie a sua irmã. Quero voltar logo pra casa da minha comadre. Ainda tem muita flor pra fazer coroa. Completou ela.
            Fomos os quatro até o velório sem dizer uma palavra. Seguíamos apressados e calados. A casa da falecida estava cheia. Parentes que tinham chegado durante a noite, estudantes fardados disputando quem levaria as coroas e os arranjos de flores, vizinhos e amigos que esperavam a hora de ir para igreja, para uma costumeira missa de corpo presente e depois descer para o cemitério. Aos poucos as filas foram se formando e por último, entre uma fila e outra, o caixão sendo carregado pelos homens. Uns o faziam por solidariedade ou amizade, outros, por promessa.
            A missa transcorreu sem incidentes. Algumas pessoas chorando, outras conversando, outras rezando, meninos inquietos correndo de um lado para o outro. Finalmente, hora do enterro. As filas novamente eram organizadas, agora pelas professoras. Na frente, iam os estudantes fardados representando seus colégios e depois vinha a comunidade. Ora rezavam o terço, ora cantavam benditos tristes para fazer chorar quem tivesse com vontade. O percurso era curto. A igreja ficava numa parte alta da cidade e bem abaixo ficava o cemitério, entre eles uma escada com vários degraus que os beatos usavam para pagar promessas, fazendo a penitência de subi-los de joelhos. Começamos a descer os degraus, quando de repente começou uma gritaria.
            - Segura! Pega! E pessoas correndo para todos os lados.
            Olhei para trás e vi o caixão rebolando degraus abaixo. O povo que estava nas filas ao invés de tentar fazer alguma coisa para pará-lo corria para os lados temendo se machucarem com a velocidade que ele vinha. Pulei para o lado e ele passou por mim a toda velocidade. Os homens que o deixaram cair corriam atrás tentando, em vão alcançá-lo. A esta altura, a confusão estava generalizada.  Uns corriam pensando poder segurá-lo, outros corriam temendo ser pisoteados, alguns riam incontrolavelmente com a bagunça que se formou e os estudantes gritavam e assobiavam como se fosse uma partida de futebol.
            Finalmente, numa saliência da escada, o caixão parou. Estava parcialmente destruído. A tampa descolada, todo amassado, as flores que estavam em cima da defunta espalhadas ao longo do caminho. Quando as primeiras pessoas chegaram perto dele para tentar fechá-lo e seguir com a cerimônia, notaram que a morta abriu os olhos. Na mesma velocidade que eles vinham voltaram gritando:
            - A morta tá viva... ela abriu os olhos!
Bastaram estas palavras para que todos saíssem correndo em disparada do local. A escada ficou estreita para tanta gente. Era gente para todos os lados que na correria não se importavam de pisar uns nos outros. O que era divertimento para alguns, se tornou motivo de pânico. As pessoas gritavam e corriam escada acima. Até aquelas que diziam não conseguirem subir tantos degraus nas promessas, subiram dois de uma vez em largas passadas. Rapidamente, o local ficou deserto. Os feridos foram socorridos por amigos ou parentes e tirados dali.
Passado o impacto da surpresa, um e outro curioso, de longe ficava nas pontas dos pés, para olhar se via alguma coisa, para saber como tinha terminado tudo aquilo. A ex- defunta tentava se levantar do caixão, mas não conseguia. Estava zonza de tanto ser sacudida escada abaixo. Enquanto isso, a roda de curiosos do alto da escada que a todo instante aumentava, assistia a tudo, mas ninguém tinha coragem de se aproximar. Fazendo muito esforço, ela conseguiu se sentar. Foi mais um momento de pânico e correria para aqueles que já começavam a voltar. Gente se atropelando uns aos outros fugindo com medo do fantasma.  As pessoas que estavam mais ao longe se benziam achando que era realmente assombração, e alguns, achavam ter sido um milagre. Ela havia ressuscitado. Como não conseguia sair do caixão sozinha, ela começou a gritar por socorro:
- Por favor, me ajudem. Eu não morri, não. Vejam, estou viva!
            A multidão não queria conversa. Olhava de longe a agonia dela, mas ninguém tinha coragem de chegar perto. Passado algum tempo, vi a minha mãe se chegando devagarzinho para perto da amiga. Manteve-se a meia distância por precaução e disse:
            - Comadre? Você tá viva ou é assombração?
            - Ei, comadre. Tô quase viva. Acho que quebrei a minha perna. Não consigo me levantar.
            - Como foi isso, comadre? Posso jurar que você tava morta!
            - Tava como morta; ouvia tudo, mas não conseguia me mexer. Até chorei, mas as lágrimas não caíram. Dei um ataque, comadre e ia sendo enterrada viva. Graças a Deus houve esse entropicão que me derrubou e com tanta pancada consegui me acordar.
            - Ave Maria, comadre. Cruz credo! Que coisa horrível. Chegue, vamos levantar.
 Dizendo isso, ela chegou mais para perto, segurou nos braços agora quentes da amiga e fez força para que ela se levantasse. Foi então que lembrou que a roupa que haviam feito para ela se enterrar tinha apenas a parte da frente. O irmão que deveria arcar com as despesas do funeral não dera dinheiro para tal e improvisaram apenas um pano marrom que passava pelo pescoço, cobria os seios e era amarrado na cintura. Como ela havia feito uma promessa com São Francisco, não poderia ser enterrada com uma roupa comum, improvisaram assim. Afinal, ela estava morta mesmo e com as flores que colocariam dentro do caixão, ninguém perceberia nada. “E agora”? Pensou a minha mãe. No momento, ela estava sendo a pessoa mais observada da cidade e estava completamente nua. Olhou quem estava mais próximo e viu a cabeça de Bangá., o coveiro,  escondendo-se atrás de um poste.
- Ei, Bangá, vem cá! Me ajuda! Disse ela.
- Eu? Disse ele meio disfarçado.
- Sim, você mesmo.
- Diz daí, dona Clara. Que escuto daqui Completou ele.
- Vem cá homem mole, preciso da sua camisa pra cobrir as partes de comadre!
- A minha camisa? Num tem outra coisa não?
- Não.
- Num dá pra ela ir assim, não?
- Dá não. Vem logo, me dá a sua camisa.
Ele enrolou a camisa numa pedra e jogou para ela. Minha mãe a vestiu com a camisa e com o pano que ela se enterraria, improvisou uma saia. Levantou-a com cuidado e, segurando no corre mão da escada, foram subindo davagarinho. Ninguém se aproximava. Todos olhavam de longe a cena até que foram aparecendo os primeiros voluntários. Levaram-na para o hospital, pois na queda a defunta quase morria. Quebrou a perna, algumas costelas e ficou cheia de hematomas. Depois disso, por causa da rejeição de algumas pessoas, inclusive da família, e por causa do falatório e das fofocas sobre este fato, não lhe foi mais possível morar na cidade. Teve que se mudar. Mas ainda hoje se comenta o fato e apesar de todo sofrimento e traumas sofridos dizem que ela ainda foi feliz, porque fatalmente seria enterrada viva.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens


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