segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A viagem

                                  
Estava uma manhã fria. O vento forte contribuía para que as ondas ficassem cada vez maiores e se jogassem de encontro ao navio que seguia lento a sua trajetória. Estava enjoada, suando frio e com as olheiras de uma noite mal dormida. O balanço do navio, embora pequeno, me deixava assim. Outros dias e noites viriam. A viagem seria longa, mas, segundo os mais experientes, isso era natural para “uma marinheira de primeira viagem” em um navio pequeno e pouco confortável. Com o passar dos dias o meu organismo acostumaria. Tomara! Pelo menos um pouco dessa aventura eu poderia curtir.
            Estávamos em uma viagem de final de ano. Na verdade, não seria uma simples excursão. A nossa proposta era um contrato de um ano trabalhando na Europa, mais precisadamente na Espanha, e justamente na área em que estávamos nos formando: hotelaria e turismo. Foi, sem dúvida, uma oportunidade caída do céu. Atrasaríamos um pouco a nossa formatura, mas, em compensação, ganharíamos em experiência. Trabalhar na Europa é um sonho de todo profissional. Estaríamos em contato com várias pessoas, de várias línguas, novos hábitos; certamente seria uma oportunidade rara e imperdível.
            Formávamos um grupo de vinte e três pessoas. A maioria composta de estudantes, um casal de espanhóis que coordenava a equipe e que era responsável pelo projeto de intercâmbio cultural o qual estávamos iniciando. Seria uma experiência inédita. O início seria com vinte estudantes brasileiros que se hospedariam com a família dos vinte estudantes espanhóis que viriam ao Brasil participar da mesma experiência. Conforme o projeto fosse se expandindo, a cota de alunos seria aumentada gradualmente. Fazia parte ainda da equipe, um homenzinho miúdo, magro e de óculos com lentes grossas que se encarregou de toda a papelada da viagem.
             A emoção de participar de um projeto como esse, juntamente com a metade da minha turma da universidade com uma convivência de mais de quatro anos, morar num país do primeiro mundo com uma família que me adotaria como filha, ter um bom emprego, com um pequeno salário, é verdade, mas com possibilidades de um aprendizado profissional que me daria suporte para um futuro brilhante me fazia        esquecer, ou pelo menos diminuir a tortura dessa viagem.
             Pensando bem, será que viajar de navio é tão aterrorizante assim? Todo esse mal estar físico não seria a saudade de sair pela primeira vez de minha casa, minha cidade, meu país? Não seria o medo do desconhecido e as incertezas que todas as mudanças acarretam? Ou é tudo isso somado a farra do nosso bota-fora na noite anterior? Saí do quarto que dividia com mais três colegas e subi as escadas que levavam ao convés. Toda a turma estava lá. Todos sentindo parecido comigo, mas como o otimismo é natural a todo jovem, estavam brincando, conversando, fazendo planos, curtindo a aventura e registrando na memória todos os detalhes dessa aventura.
            Os dias seguintes transcorreram sem novidades. Todos animados, mas conscientes do muito trabalho que viria, das muitas dificuldades que seriam, com certeza, superadas e das dificuldades, pelo menos nos primeiros dias, da adaptação com todo aquele mundo novo mágico.
            A chegada a Madrid foi tumultuada. Era noite, chovia muito e fazia muito frio. Descemos as escadas que davam acesso à sala de desembarque e nos deparamos com uma centena de pessoas que chegavam, partiam se procuravam se perdiam ou passavam impacientes pela alfândega com o mau humor de ter que abrir todas as malas e sacolas. Devido a todo esse tumulto, quase nem nos despedimos uns dos outros. Não tinha problema. Estaremos em casas separadas, mas juntos no trabalho, e nas horas de lazer, fora dele. Formaríamos duas turmas de dez alunos em dois hotéis bem próximos situados na área turística da cidade. Teríamos o dia seguinte, um domingo, para nos instalarmos e logo na segunda-feira estaríamos começando a nossa nova experiência. Dissemos um “tchau” apressado uns aos outros, um “depois te ligo” ou “nos falamos mais tarde” e saímos à procura de nossas novas famílias que já deviam estar nos esperando.
          Saí devagar carregando a mala pesada composta de mais livros do que roupas, sentindo que ia congelar com o frio europeu, mas com os olhos atentos, procurando uma plaqueta perdida na multidão com o meu nome escrito nela. Não demorei muito a encontrei. Uma mulher aparentando uns cinquenta anos, cabelos tingidos de louro, meio gordinha, escondida atrás de um óculos de grau, a segurava. Fui chegando e meio que gritando por causa do barulho dos alto-falantes e das pessoas ao redor falei:
- Dona Sara? Sou Ana Célia.
- Oi Ana que bom que você chegou. Fez boa viagem?
Achei estranho. Não sei por que esperava que ela falasse em espanhol ou, pelo menos, com algum sotaque.
- Sou Laura. Vim esperá-la. A dona Sara pede desculpas, pois não pôde vir. Além do seu restaurante está cheio hoje, ela sofre de rinite alérgica e com esse temporal... sabe como é.
Balbuciei alguma coisa, assim como “não tem problema” agora mais aliviada com a explicação.
- Vamos? Disse ela indicando-me a saída do lado esquerdo.
Caminhamos em direção ao portão da saída, Laura na frente abrindo caminho por entre as pessoas e logo atrás eu a seguia carregando os meus pertences. Cruzamos a calçada e nos dirigimos ao estacionamento. Um carro preto nos esperava a alguns metros à frente.
No percurso, as ruas alagadas e movimentadas prendiam a atenção da motorista. Ela se mantinha séria e calada atenta ao volante. “No trânsito, toda a atenção é pouca”. Lembrei-me dessa frase do meu pai quando iniciei o meu curso para motorista na autoescola de tio Bené.
O carro seguia em frente se afastando cada vez mais do centro da cidade. A chuva quase não me deixava ver nada. Quase não conversávamos. Após uns quarenta minutos, o carro parou. Tentei ver através dos vidros embaçados onde estávamos. Era uma rua larga com um canteiro separando-a ao meio. À nossa frente, um muro alto com grades. Pelo portão, aberto a nossa chegada, dava-se para ver a uns cem metros um bonito sobrado todo iluminado, cercado de jardins. Descemos do carro e antes que eu tentasse pegar a minha mala, escutei a voz de Laura dizendo:
- Não, não precisa pegar a mala. Aqui a demora é pouca. Você deve estar com fome. Jantamos e depois eu te levo. Aqui é o restaurante de dona Sara.
Atravessamos o portão que se fechou automaticamente atrás de nós e seguimos em direção ao prédio, de onde vinha um barulho de música, de pessoas comendo ou bebendo, ou as duas coisas. Entramos. Era um amplo salão cheio de mesas, cadeiras e de pessoas sentadas conversando alegremente. No teto, vários abajures iluminavam o salão e as escadas que levavam ao andar de cima. No canto direito, atrás de um pequeno balcão, estava um senhor de cabelos grisalhos, moreno, alto e de bigode largo que atendia às garçonetes que serviam as mesas. Sentamos e enquanto esperávamos pelo jantar, pedimos um aperitivo. A longa viagem e a expectativa da chegada tinham me deixado cansada.
Acordei atordoada. A cabeça doía, latejava até. A minha boca estava seca e eu sentia-me zonza. Tentei me levantar e não conseguia me mexer. Estava escuro. Eu não conseguia ver praticamente nada e não conseguia lembrar de como tinha ido parar ali. Fiz um esforço e levantei-me cambaleando. Mais acostumada com a escuridão do quarto conseguia ver agora... sim, eu estava em um quarto com poucos móveis. Apenas uma cama larga e uma geladeira pequena. Tentando achar um pouco mais de claridade, abri a porta da geladeira. Nela havia água, cervejas, refrigerantes, algumas frutas e comida conservada em pequenos potes de plástico. Encontrei o interruptor de energia e acendi a luz. Os meus gestos pareciam imagens em câmera lenta, ou então, eu havia perdido a coordenação motora. Todos os meus gestos eram lentos e imprecisos. Na minha frente havia uma porta entreaberta e, devagar, apoiando-me na parede, vi que se tratava de um pequeno banheiro. O perfume suave de limpeza me incentivou a tomar um banho. Certamente me sentiria melhor depois dele. Voltei para o quarto e foi aí que percebi, depois de procurar a minha mala em vão, que eu estava trancada. Fiquei dominada pelo pânico. Sem saber o que estava acontecendo apelava para Deus, para os anjos, para os santos que não se confirmasse o que eu estava pensando. Bati na porta, gritei por alguém. O desespero foi maior quando percebi que o único nome que eu sabia era Laura, que não sabia onde estava, não conhecia ninguém e todos os meus pertences haviam sumido. Gritei por ela uma, duas, mil vezes batendo como louca na porta trancada. Nada acontecia. Comecei a chorar tentando achar uma saída. Estava me sentindo fraca, sem forças, irremediavelmente entregue à sorte, ao destino, desejando que tudo fosse um grande mal entendido, que eu estava sonhando e que nada daquilo estava acontecendo. Eu estava suando frio, trêmula, apavorada. As horas passavam e nada acontecia. Tudo estava no mais absoluto silêncio.
Algum tempo depois, a parta se abriu e Laura entrou. Corri para ela tentando falar, mas as lágrimas me sufocavam. Pela aparência dela, as minhas certezas se confirmavam. Eu estava presa, aquele quarto era o meu cárcere e ela, a minha carcereira. Ela agia e falava como um policial de um sistema prisional. Estúpida, nervosa, intransigente e extremamente arrogante e grosseira começou a falar:
- Daqui pra frente, você fará o que eu mandar. Você agora é minha escrava e tem sorte disso. Poderia ser alguém bem pior do que eu. Este quarto será a sua casa. Será tratada de acordo com o seu comportamento. Você não tem escolhas, nem vontades, nem opiniões. Agora quem lhe conduz sou eu. Você receberá as pessoas escolhidas por mim, nos horários que eu determinar. Tire as roupas, tome um banho, aliás, mantenha-se sempre bem limpa e vista estas roupas. Jogou um pacote em cima da cama e saiu.
Eu já não tinha mais lágrimas. Sentia-me febril, com sede e cada vez mais fraca. A partir daí, a tortura começou. Nunca havia pensado que algo tão bom como o sexo fosse também algo tão nojento e humilhante.
Os “clientes” entravam e saíam do meu quarto o tempo todo. Eram homens de toda espécie. Delicados ou grosseiros, brancos ou negros, velhos ou novos, sozinhos ou com amigos, bêbados, viciados, bandidos, policiais... todos. A minha vida se resumia nesse quarto, seminua (vestindo apenas uma bata semelhante a dos hospitais), sem saber se era noite ou dia, sem ver praticamente ninguém, além dos frequentadores do quarto. Apenas uma faxineira vinha diariamente para limpar tudo e abastecer a geladeira. Foi através dela que descobri, tempos depois, o motivo de sempre me sentir tão mal, e de vomitar constantemente. Tudo o que era colocado na geladeira continha uma substância para me deixar dopada, alheia a tudo. Agora entendia o porquê de nunca ter conseguido reagir a toda tortura a que era submetida. Sempre estava sonâmbula, sem tato, sem forças nos braços, nas pernas e com a visão meio embaçada. Este talvez fosse o motivo para tantos “fregueses”. Eles não precisavam de grande esforço para realizar todas as suas fantasias eróticas, por mais degradantes e anormais que fossem.
Diante disso, evitei comer. Vivia basicamente de biscoitos e das sobras de refrigerante dos clientes. A falta de comida somada ao intenso trabalho meses e meses seguidos fazia-me definhar rapidamente. Um dia percebi que tinha febre constantemente e que, ao escovar os dentes, notava sangue misturado à saliva. Comentei com a faxineira, única pessoa que, raras vezes, falava comigo, mas nenhuma providência foi tomada. A minha saúde piorava cada vez mais. Sentia muita febre, tossia sem parar o que me fazia vomitar sangue.
Pela primeira vez, depois de vários meses, um homem entrava no meu quarto sem procurar sexo, embora ele fosse frequentador assíduo da casa. Examinou-me rapidamente, meio que com nojo e diagnosticou tuberculose. Tratar-me não valeria a pena. Seria jogar dinheiro fora além de se arriscar inutilmente, pois eu não era nada, não valia nada. Era um móvel gasto pelo tempo e coisas assim jogam-se no lixo.
Jogaram-me na rua. Andava com dificuldade segurando a minha velha roupa agora tão larga. A tosse, a febre, o frio e a fome faziam-me ver miragens. Reaprendi a esboçar uma espécie de sorriso quando encontrava um saco de lixo nas calçadas. Neles sempre encontrava resto de comida e jornais velhos que eu improvisava como lençóis para suportar o frio das madrugadas geladas.
Um dia, casualmente, deparei-me com uma delegacia de polícia. Enchi-me de alegria, pois acreditava que, tornado público o meu caso, finalmente seria enviada para casa. Depois de várias tentativas consegui entrar no prédio. Reconhecia que eles tinham razão. A minha aparência estava horrível; cabelos desgrenhados, uma palidez cadavérica, olheiras enormes e muito suja. Nem lembrava mais de quando havia tomado o último banho. Mesmo assim, um jovem com olhar de compaixão atendeu-me. Contei a minha história com todos os detalhes. Ele a ouviu atentamente, ofereceu-me um chá, levou-me até a porta, deu-me uns trocados para que eu me dirigisse à embaixada brasileira, pois era um caso internacional. Entrei num ônibus cheia de esperança, embora sabendo que eu tinha uma história sem personagens, sem lugares, sem pessoas, sem nomes. Torcia para que mais uma vez não tenha sido enganada. Que através da embaixada eu conseguisse voltar ao meu país. Que uma investigação fosse feita, que minha família e a família dos meus colegas estivessem incansavelmente nos procurando... torço para que algo de bom aconteça.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

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