terça-feira, 21 de setembro de 2010

A promessa

Era uma noite de sexta-feira, já passava das nove horas da noite quando entramos na igreja. O padre encerrava a última missa do dia. Minha mãe, com o terço na mão, procurou se acomodar em um dos bancos na lateral do altar seguida por nós. Levávamos algumas coisas para passarmos a noite. Almofadas, lençóis, café, biscoito, fósforo, água e um vidro com água benta. Íamos pagar uma promessa que ela fizera tempos atrás para alcançar três graças importantes: curar o meu pai de umas mazelas deixadas por uma picada de cobra jaracuçu; curar a sua asma, ela dizia andar puxando o ar para conseguir respirar com melhor qualidade e para que se descobrisse a que a minha irmã era alérgica. A cura do meu pai era a mais urgente; as outras eram doenças velhas e não letais. De certa forma, já estavam acostumadas com elas. O sacrifício era grande para um pedido apenas. Passar a noite na igreja rezando e agradecendo requer coragem. Todos dizem que é um lugar mal-assombrado.
Embora sabendo que o seu marido ainda não estava totalmente curado, ela resolveu pagar o prometido ao santo para ver se apressava a graça. O santo estava lembrado de que ela havia feito todos os procedimentos necessários para curá-lo. Primeiro sajou a ferida e o escondeu numa cabana afastada no pé da serra para que ele não ouvisse nenhum humano.
- Tem gente de sangue ruim. Basta falar para que o sangue do infeliz afine e saia por todos os poros. Nesse mundo tem gente pra tudo! Dizia ela na época.
Depois de oito dias na cabana, fez o segundo procedimento: Levou-o a um rezador curador para que ele, através da sua reza milagrosa, conseguisse amenizar o seu sofrimento. O homem, vendo o seu estado de saúde, sangrando pelas gengivas e com o local ainda muito inflamado, aplicou o remédio. Rezou em cima do ferimento usando um ramo verde sacudindo-o na forma de pequenas cruzes, depois cuspiu na boca do meu pai para matar o veneno da danada. Como o enfermo quase não obteve melhora, ela, por recomendação de uma vizinha que também rezava e curava pessoas, realizou o terceiro procedimento: colocar uma brasa em cima do ferimento, deixar queimar por uns segundos e depois ficar usando um unguento de ervas e raízes. Lembro-me que eu vi a fumaça subir, o cheiro de carne assada se espalhar pelo ar e o grito do meu pai antes de desmaiar. Mas remédio era remédio por mais cruel que fosse.
Agora não tinha mais jeito. Era apelar para os santos. A melhora de meu pai era muito pouca. Estava quase cego, sentia tremores, muitas dores no local ainda inchado e ainda perdia sangue pelas gengivas. Diante de tal quadro, ela fez esta promessa.
Para que ela não ficasse sozinha, eu e a minha irmã Carolina, chamada carinhosamente de Carrôla, a acompanhamos. Carrôla era outra que precisava de uma benção e por isso fazia parte da promessa. Vivia inchada por causa de uma alergia. Teria que ir para uma cidade grande, fazer uns testes e nunca esta possibilidade apareceu. Era preciso que o santo concedesse mais essa graça. Vivia tomando chás e remédios paliativos. Muitas vezes até o mesmo chá feito para acalmar a asma da minha mãe. Doença essa que também precisava ser melhorada. Ultimamente, com tantas preocupações, ela sentia crises fortíssimas.
Terminada a missa, o sacristão se aproximou e nos disse que trancaria todas as portas. Se precisássemos sair poderíamos pular uma das janelas. A minha mãe disse sim com a cabeça para não interromper a reza e ele foi embora.
Igreja fechada, luzes apagadas, apenas umas poucas velas acesas no altar-mor e nos altares laterais. Minha mãe começou a rezar o terço que nós, prontamente o respondíamos. O silêncio era quebrado apenas pelo vento que assobiava passando por baixo da janela dando-nos a idéia de estarmos distante de tudo e de todos.
O sino badalava onze horas e quarenta e cinco da noite, quando escutamos um ruído vindo do coro. Olhamos e nada vimos. Continuamos a rezar, mas o barulho continuava e agora mais forte. Como se fosse um sussurro de várias vozes conversando ou rezando. Olhei novamente e vi um vulto passar. Era de uma mulher. Andava rapidamente fazendo balançar uma saia comprida. Um braço meio afastado do corpo e o outro segurando a cabeça por trás, como se fosse abraçá-la. Um medo enorme tomou conta de mim. Eu sabia que o sacristão havia trancado apenas a gente. Como então explicar a presença dessa mulher? Olhei novamente e vi que a igreja estava completamente tomada por pessoas. Os bancos estavam lotados de mulheres e homens que pareciam rezar. Fiquei petrificada, toda arrepiada, tentei dizer a minha mãe, mas a voz não saiu, tentei desviar o olhar, mas fiquei como se hipnotizada. Com esforço, bati no braço dela e mostrei. Ela olhou e embora tenha ficado também muito assustada, aparentando muita calma, nos puxou para mais perto dela. A minha irmã começou a tremer e como não tinha muito o que fazer, enrolou a  cabeça com um lençol e enlaçou o seu braço no braço da minha mãe. Unidas, parecíamos firmes, mas a igreja enchia cada vez mais. Agora já tínhamos companhia no mesmo banco. Às vezes, abria os olhos e olhava de soslaio. Tinha criança, homens e mulheres na sua maioria com a cabeça enrolada com um xale ou véu e todos pareciam muito sérios, silenciosos no andar e no rezar. Escutavam-se apenas sussurros. O nosso estado emocional era assustador. Tremíamos agarradas umas as outras de olhos fechados por não querer ver tal cena. Não conseguíamos nos mexer.
Meia noite em ponto, as luzes se acenderam. Alguém rezava alto. Olhamos para o altar e lá estava um padre. Todos se ajoelharam e começou uma missa. Carrôla se desvencilhou da minha mãe e correu chorando e cambaleando em direção a janela. Tentamos segurá-la, mas foi tarde. Ela passou pela multidão como um raio e alcançou a janela, tirou a trave que segurava os dois lados, abriu-a e pulou para fora. Ficamos nós duas. Abraçavamo-nos com tanta força que chegava a doer os braços. Fiquei com uma vontade enorme de fazer como a minha irmã, mas mesmo que eu pudesse me mexer, não deixaria a minha mãe sozinha. Não nesse momento em que ela mais precisava não estar sozinha.
            Passaram-se alguns minutos e fomos surpreendidas por um silencio profundo. Abrimos os olhos devagar e tudo estava como antes. Apenas nós duas e apenas as velas acesas nos altares. Tudo tinha sumido rapidamente e somente o vento fazia o seu ruído por baixo das janelas. Mesmo assim, com tudo normal, não conseguíamos nos mexer. Os nossos corações acelerados batiam tão alto e forte que se faziam ouvir. O medo foi grande demais. Estávamos coladas uma a outra. Aos poucos fomos voltando à realidade e conseguimos pensar, pois até sem pensamentos ficamos. Percebi que havia molhado as calças e que tinha cãibra nos dedos e pernas.
            - Mamãe! Francisquinha? Ouvíamos, como se fosse de longe os nossos nomes.
            - Mamãe, estou aqui... trouxe ajuda. Dizia Carrôla pela janela entreaberta.
            Pularam para dentro ela, o sacristão e alguns amigos perguntando o que tinha acontecido e se estávamos bem. Minha mãe ainda trêmula e pálida respondeu:
            - Claro que sim. Por que não estaríamos? O que aconteceu pergunto eu. O que você andou inventando Carrôla?
            Carrôla olhou para ela sem nada entender, olhou para mim e olhou para os amigos que trouxera. Todos olhavam para ela. Ela aflita, repetia:
            - Foi verdade o que lhes contei. Juro que falei a verdade.
            Sob protestos e insultos a turma foi saindo devagar agora já pela porta aberta.
            - Menina mais louca, menina mimada! Se fosse minha filha, ela ia ver. Acordar a gente uma hora destas com uma mentira deslavada? É gostar de chamar atenção! Diziam eles.
Apenas o sacristão ficou em pé, na frente da minha mãe, olhando para ela com cara de desaprovação.
            - A senhora não vai confirmar a história de Carrôla, não? Perguntou?
            - Não. Disse ela.
            - Ela vai ficar por mentirosa mesmo a senhora sabendo que ela não é? Retrucou ele.
            - Meu filho, mesmo que eu confirmasse não acreditariam em nós. Essa história é velha. Todos comentam desde antes, tanto é que eu trouxe água benta porque muitos me alertaram sobre o perigo de se pernoitar nesta igreja. Melhor deixar dúvidas para os que acreditam e minha filha ser conhecida por mentirosa pelos que não acreditam, do que todos nós servirmos de chacota e esta história ir mais adiante. Sei que não é justo para ela, pois ela está sendo sincera e só queria nos ajudar, mas ela fugiu ao nosso acordo. Combinamos antes que o que acontecesse aqui, aqui ficaria.
            O sacristão fez que sim com a cabeça e sentou ao nosso lado. Carrôla chorava copiosamente por tudo o que aconteceu e eu, apenas ouvia. Sem fazer julgamentos, sem ter opinião a respeito, sem conseguir assimilar direito a gravidade ou não do acontecimento. A cabeça zonza, os olhos lacrimejados, as pernas bambas, parecia que tinha sido atropelada por um caminhão.
            O restante da noite transcorreu sem mais novidades. Já era sabido que se algo de paranormal acontecesse seria até a meia noite. O sacristão bem o sabia e por isso ficou conosco o restante da madrugada. Por causa da fofoca que já devia estar solta na cidade, resolvemos sair antes do dia clarear. Além do susto e do medo pelo qual passamos, não teríamos mais condição de responder a perguntas irônicas e muito menos de sermos ridicularizados pelos mais afoitos.
            Depois de uns dias, quando tudo se acalmou. Afinal, qual a cidade pequena do interior nordestino que não conta, com a mais absoluta certeza, uma história de assombração na igreja ou cemitério? E quantas pessoas acreditam e a divulgam com uma pitada de acréscimo para dar maior veracidade a ela? Como dizemos nós matutos: “Contar um causo sem aumentá-lo, sem interpretá-lo não tem graça nenhuma”. Pensei no nosso grande feito. Passamos por tudo isso que nos abalou físico, moral e emocionalmente... ou não passamos? Será que foi fruto da minha imaginação? Ou isto aconteceu realmente? Não sei. Sei apenas que tudo ficou exatamente igual a antes: Pai doente, Carrôla inchada e mãe puxando.

Crédito do texto: Marta Adalgisa Nuvens

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