segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Àrvore da Preguiça - Jericoacoara - Ceará


Crédito da imagem: Marta Adalgisa Nuvens


Os anjinhos


            Era uma vez três meninos inseparáveis. Duas meninas e um menino eram irmãos na genética e nas travessuras. Todos na vizinhança tinham queixas: era galinha com pernas quebradas para se treinar como remendar ossos, cavalo de rabo cortado para se treinar uma nova estética, cachorro de pelo raspado para se treinar aplicação de injeções, pomares invadidos e saqueados... enfim toda sorte de traquinagem eles faziam. Podia-se pensar que era negligência dos pais, mas não. Eles eram austeros e os repreendiam sempre. Era meninice mesmo.
            Chegadas as férias escolares, os pais bolaram um plano para conter, pelo menos pela metade, as travessuras do trio, que tinha fama consagrada na redondeza pelo apelido de “Os anjinhos”. Apelido esse que dava maior ênfase à aparência; já que eles tinham cachinhos loiros e ondulados como anjinhos barrocos, carinha de anjo e de uma meiguice inacreditável. Tratavam sempre bem a todos, principalmente os mais velhos, às vezes até fazendo-lhes favores. Baseados nisso, Seu João e D. Laura arquitetaram um plano: Todos os dias eles iriam procurar nos arredores do sítio e até nos sítios vizinhos, pois não adiantaria dizer que não invadissem as terras vizinhas, preás para D. Julia que estava enferma, morava sozinha já na velhice e apreciava muito a carne desse  bichinho.
            Tarefa aceita de bom grado, começou a caçada. Primeiro descobriram as trilhas dos animaizinhos e armaram fojo, uma espécie de arapuca em que se cava um buraco, coloca-se uma tábua com fixação apenas no meio, como se fosse uma gangorra e, em seguida, cobre-se com terra. Quando eles pisam, a ponta da tábua cede e eles caem no buraco. Armadilha instalada era só esperar o final da tarde e ver o quanto se tinha capturado no dia. Mas isso era pouco. E o restante do dia? Mantê-los ociosos era muito arriscado. Então lhes foram dadas também autorização para capturá-los nas terras que haviam sido queimadas para o plantio. Nas chamadas brocas comuns nessa época que antecede a época das chuvas. Como o fogo é ateado em circulo, nem sempre eles sabem pra onde correr terminam ficando sem opção de saída e entram nas tocas.
            E foi numa das brocas visitadas por eles que tudo aconteceu. Eles descobriram um buraco que tinha a metade de um preá obviamente queimado, mas ao retirá-lo, perceberam um outro que também estava morto. Esse por asfixia ou pela temperatura, pois o seu corpo estava intacto e resolveram investigar melhor. Quem sabe não encontrariam mais e em melhor estado? A toca era estreita e não cabia a mão do menino, então coube a mais nova do grupo a incumbência de meter a mão e retirar outros que ali houvesse. Ela meteu a mão novamente e percebeu que havia um vivo e foram armar uma estratégia de capturá-lo.
            Foi decidido por unanimidade que ela se deitaria no chão para que o seu braço ficasse mais bem posicionado, seguraria as perninhas dele com firmeza e o puxaria com rapidez. Ele deveria estar de costas e não iria poder mordê-la. Os outros dois anjos estariam aguardando com paus nas mãos para matá-lo a pauladas logo na saída antes que ele tivesse tempo de retornar para dentro do buraco, já que ela ia soltá-lo para que as pauladas não atingem a sua mão. E assim foi feito. Ela deitou-se no chão, colocou a mão buraco adentro, pegou em uma das pernas do animal e como o seu rosto tava muito próximo das futuras pauladas, disse:
            - Peguei! Vou puxar, soltar e rolar do lado aí, vocês matam ele.
            Quando ela puxou e soltou as pernas do bicho foi que percebeu que o tal bicho não era um preá. Era uma aranha caranguejeira enorme que zangada ou assustada, tinha as patas dianteiras levantadas prontas para o ataque. Vista de tão perto ela parecia enorme de pelos eriçados pronta para arremessá-los na sua direção. Ela ficou paralisada. Não podia rolar para o lado, como o planejado, não podia gritar, não podia sequer fechar os olhos e evitar ver a tudo isso. A equipe das pauladas havia corrido também pelo medo e pela surpresa e gritava de longe que ela fugisse dali. Passados alguns segundos que pareceram horas, a aranha voltou para dentro da toca, mas ela continuava lá na mesma posição de antes. Sentia vontade de chorar, de gritar, de correr, de ver se tinha sido atingida por alguns pelos ou alguma mordida, mas não conseguia. Continuava imóvel paralisada pelo medo. Seus irmãos voltaram, a ajudaram a levantar e a sacudiram para ver se ela pelo menos piscava e nada de ela responder aos estímulos dos gritos e safanões impostos pela dupla. Então se lembraram que numa novela uma atriz ficara assim e tudo se resolveu com umas boas palmadas no rosto dela. E uma chuva de tabefes estalou no seu rosto fazendo-a acordar. Só então ela conseguiu chorar. Pela surpresa, pelo medo, por ter sido abandonada pela equipe, pelos tabefes... por tudo.
 Para os outros dois, o pior já tinha passado, mas ainda tinham que enfrentar a sua mãe e explicar o estado da irmã mais nova e ausência de preás naquele dia. Prometeram-lhe mais umas boas tapas se ela contasse e a levaram para casa. Como nada nesse mundo fica oculto por muito tempo, o estado de choque da menina e a febre alta durante a noite, tinha que ter uma explicação. E teve. E a partir de então o trio de travessura sofreu um ajuste. Embora as brincadeiras tenham continuado nada mais de aventuras ou brincadeiras de meter a mão nos buracos porque ainda hoje esta menina, embora já adulta, tem fobia de aranhas.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Beach park - Fortaleza - Ceará


Crédito da imagem: Marta Adalgisa Nuvens


Pensar em você


            Pensar em você é como sentir o calor das manhãs ensolaradas nas areias de uma praia deserta em dia de mar calmo. É sentir o vento no rosto, ouvir o barulho da água e mergulhar nas piscinas formadas pelas ondas.
            Pensar em você é sentir preguiça de levantar numa manhã chuvosa.  Sentir o seu corpo se enroscar ao meu procurando calor e carinho. É ouvir como um sussurro o seu gemido baixinho de conforto e de aconchego.
            Pensar em você é a tranquilidade de uma música clássica, o encantamento de uma paisagem verde com uma pequena cachoeira; a convivência com o simples, o comum, o belo.
            Pensar em você lembra a harmonia de uma noite de inverno, perto da lareira, tomando vinho, conversando sobre qualquer coisa que nos dê prazer e desejando que esse momento seja eterno.
            Pensar em você é sentir paixão, vontade de ficar junto... É vontade de continuar essa convivência tão singular que construímos até aqui. É ter a certeza de que sem você serei uma pessoa sem cor, sem brilho, sem graça.
            Pensar em você é ter a alegria de saber que amei na vida enquanto muitos passam por ela sem sentir todas essas sensações que o amor nos mostra e saber descrevê-las uma a uma.
            Pensar em você é escrever para que a sua presença se torne mais concreta, para que eu registre a sua passagem pela minha vida, é ter a pretensão de que, aqueles que leem lhe imortalizem também.
Pensar em você é pensar em mim. No quanto eu cresci com a sua convivência, no quanto me transformei em uma pessoa mais coerente, mais humana, mais sábia, mas feliz perto de você.
Pensar em você é desejar que tudo isso que eu sinto seja sentido e desejado por você também e que a nossa história ultrapasse as barreiras do tempo, das cores, das emoções, do imaginável e do infinito...
Amo você.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

Pedra furada - Jericoacoara - Ceará

Crédito da imagem: Marta Adalgisa Nuvens

O milagre



            Jacinta era uma moça de boa índole, bem nascida, bem criada, frequentou as melhores escolas, fez os melhores cursos, Tornou-se uma moça intelectualizada para a sua cidade do interior, na qual a população não valorizava muito uma educação assim tão esmerada. Estudar desse tanto, diziam “é pra gente que não tem o que fazer” “é pra gente que tem o miolo mole”. Mesmo sendo tratada com diferença pelos conterrâneos, ela era uma moça feliz. Convivia bem com todos e todos a tratavam bem. Mas, Jacinta era uma moça sozinha. Não conseguia arrumar uma companhia e isso a deixava triste. Embora fosse meiga, solidária, boa ouvinte e boa conselheira, isso não aumentava as suas chances de arranjar um bom marido... um namorado sequer. Os rapazes fugiam dela. Primeiro porque era muito feia, segundo, porque era sabida demais. Os rapazes se intimidavam com tanta inteligência.
Um dia, ela resolveu apelar para o santo da cidade, São Bom Jesus da Serra. Diziam que ele era casamenteiro e que moça que frequentasse as suas novenas, saberia logo se casaria ou ficaria no caritó. Então ela decidiu participar da sua festa anual para acabar de vez com essa procura. ‘“Com o santo, não tinha engano, ou ata ou desata, era pei bufo”, diziam. Comprou roupa nova como todos fazem e no dia 14 de setembro, o seu dia, subiu a serra, pelas escadas, para o santo visse que estava bem intencionada e foi para os festejos. Era uma festa tradicional. Todos os anos tudo se repetia exatamente igual, a não ser, naquele ano pela presença de Jacinta. Primeiro tinha uma missa na capelinha, lugar e hora de agradecimento pelas graças e favores alcançados, depois tinha a queima de fogos de artifício celebrando os festejos e em seguida um leilão sob a sombra de um visgueiro centenário onde as famílias se reuniam arrematando prendas, matando a sede com bebidas geladas e matando a fome com comidas típicas. Era nessa hora que Jacinta se mostraria mais. Na hora do entretenimento, da distração de todos. E ela estava certa. Foi nessa hora que os seus olhos se cruzaram com os olhos do motorista do caminhão de romeiros. Foi um momento mágico. Parecia mesmo que tudo acontecia sob a influência e as bênçãos do santo.
O rapaz se aproximou depois de muitos olhares e começaram a conversar. Ambos tímidos, talvez pela falta de costume, pois na beleza ou, melhor dizendo, na escassez dela eles eram iguais. Conversa vai, conversa vem, resolveram se afastar um pouco mais do grupo, o barulho era grande e eles, nesse momento, precisavam de um lugar mais tranquilo para que se conhecessem melhor. Saíram passeando devagar, parando aqui acolá pra que ela lhe mostrasse o lugar e a história dele. Era uma serra bonita coberta de verde, de clima ameno e de uma vista panorâmica de cortar o fôlego. Via-se todo o vale, os pequenos rios, as estradas se entrecortando e as pequenas comunidades lá em baixo. Sentaram-se numa pedra à beira do abismo mais afastada ainda de todos e partiram para os preliminares de um romance que, pelo visto, parecia ser duradouro, a julgar pelo interesse mútuo.
Mas, como diz o dito popular: “Quem nunca come mel, quando come se enlambuza”. As carícias e as vontades foram além do limite e numa investida menos despudorada do motorista e num disfarce de pudor da moça, ela recuou mais do que devia, perdeu o equilíbrio e tombou serra abaixo. Ele a via despencar precipício abaixo como uma folha de papel ao vento devido a sua magreza e o seu vestido novo que se encheu de ar. Ficou desesperado. Gritou, chamou a atenção e muitos correram para ver o acontecido. De Jacinta nada mais se via. Desceu. “Espatifou-se nas pedras” muitos pensavam, choravam e torciam para que o pior não tivesse acontecido. Outros pensavam: “Foi empurrada, coitada”! “Feia do jeito que era o rapaz não quis, ela insistiu e ele a empurrou”. Nesse intervalo, muitos já corriam serra abaixo para ver o resultado triste da alegre Jacinta. Os primeiros que chegaram ao suposto local de colisão nada viram. Procuravam por todos os lugares e nada de Jacinta. Uns calculavam a trajetória do vento e na possível mudança de local, outros, impacientes, formavam grupos de buscas para ver se ainda a encontravam com vida. E foi uma dessas equipes que, nas buscas, ouviram um pequeno gemido no alto das suas cabeças e a viram pendurada numa árvore presa num galho por seu vestido novo. Imóvel, com medo de se mexer e cair daquela altura ainda considerável, não gritava por socorro, apenas gemia baixinho.
E foi assim que se deu o milagre. Para os católicos, o milagre foi do santo que não a deixou morrer; para os ateus, o “milagre” foi do vestido novo que resistente a prendeu nos galhos de uma árvore igualmente resistente e para os românticos, o milagre foi do amor e da vontade de vivê-lo depois de tanto tempo de espera.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens