quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Passeio Público - Fortaleza - Ceará

Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

Inocência perdida


Hoje senti saudades de mim. Da minha infância saudável e cheia de travessuras todas compartilhadas e auxiliadas por você. Virávamos o mundo, pintávamos o sete na maior cumplicidade. Sem medos, preocupações ou problemas. Na nossa família irmãos brincavam com irmãos, irmãos protegiam irmãos, irmãos defendiam irmãos. Éramos inseparáveis. Íamos juntos para escola e como ela era distante, vínhamos brincando sem nos importarmos com o sol do meio-dia, com o calor insuportável que fazia. Éramos crianças; o importante era a nossa companhia e a nossa criatividade de inventar brincadeiras. Caçar passarinho de baladeira pela aventura de ir, não de matar. Pastorear as cabras, as vacas brincando na sombra do pé de tamburi fingindo sermos grandes fazendeiros. Construíamos miniaturas de cercados com talos de cana-de-açúcar, procurávamos as pedras mais bonitas para representar o rebanho e nos transformávamos em ricos fazendeiros. No inverno tomávamos banho de chuva, na seca íamos para a nascente chamada carinhosamente de bica ou íamos para a cacimba tomar banho “de susto”. Você me trazia a água e eu lhe trazia água. E foi nesse momento que nos fizeram ver que éramos diferentes. Eu era menina e você menino; detalhe nunca antes percebido sexualmente. Maldade do mundo adulto. Até então éramos apenas crianças. Lembro-me de estarmos nus “esquentando sol” depois de um banho de água fria, conversando sobre qualquer coisa, quando aquele homem, vendedor de galinhas, nos fez sentir vergonha da nossa inocência. Eu lhe olhei e você me olhou e nos vestimos envergonhados por sermos diferentes.
Não perdemos o costume de antes de dormir conversarmos longamente e de nos acenarmos desejando um “boa noite”, mas os nossos banhos que se sucederam nunca mais foram os mesmos. Algo tinha se quebrado após a observação daquele homem. A liberdade para algumas brincadeiras e a imparcialidade para algumas escolhas, havia se perdido.
Crescemos. Ficamos adultos. Eu optei pelas letras, gostava de estudar. Comecei a me interessar e a perceber os caminhos para um bom texto. Aquilo que os pintores traduzem com pincel e tintas e que os escritores traduzem com a organização das idéias e das palavras.
 Você não, gostava da natureza, das plantas, animais e eles lhe gostavam também. Era uma sincronia jamais vista. Você se tornou um grande aprendiz e conhecedor de plantas medicinais, plantas ornamentais, comportamentos de animais... Enfim, um estudioso empírico da natureza, um conhecedor de ventos, luas, sóis, chuva e estiagens. Casou, teve filhos; fez a sua história.
Eu construí o meu caminho... e por incentivo das letras vim parar na capital. Estamos distantes... ficamos distantes geograficamente, mas o nosso amor é eterno. O nosso bem-querer resiste a chuvas e tempestades, as adversidades que a vida nos apresenta; como o tempo, o lugar e as escolhas. Mas, pelo resto da vida, isso ficou marcado. Uma simples frase dita por um vendedor ambulante, mudou o rumo da nossa infância até então, inocente.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Praça do Ferreira - Fortaleza - Ceará

Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

E nós aonde vamos?

         Não é preciso ser educadora para constatar que a educação é a base de tudo. Todos reconhecemos isso; a sociedade, os profissionais da educação, a comunidade escolar, a mídia, os governantes. Somos alertados ainda mais nesta época de campanhas políticas. Eles, os candidatos, identificam o erro, prometem mudanças urgentes e nada acontece. A falta de vontade política associada à falta de interesse de boa parte da sociedade em melhorar esse quadro, compromete o futuro dos jovens que crescem sem opção de escolhas. Sem uma educação de qualidade e sem qualificação profissional, o mercado de trabalho torna-se cada vez mais distante. Torna-se um sonho, uma utopia. De dois em dois anos nós os elegemos em busca de melhoras, mas um povo sem consciência política termina escolhendo àqueles que não têm compromisso em trazer melhorias coletivas, apenas visualizam as melhorias pessoais.
A preocupação da maioria dos políticos é com a estatística do índice de analfabetismo colocando como alfabetizado todo aquele que sabe desenhar o seu nome. Para ele não interessa se o cidadão é letrado ou não E não sendo letrado exerce realmente a plena cidadania? Sem o cesso as letras ele realmente sabe decidir sozinho? Ele sabe da importância de não comercializar o seu voto? Vivemos numa democracia e vence aquele mais votado. Será que para eles não é melhor assim? Ter dinheiro para comprar votos ou barganhá-lo por uma dentadura é bem melhor do que discutir estratégias, fazer planejamento para executar ações que melhorem a vida da comunidade, inclusive as escolas dos nossos filhos.
Uma escola de qualidade, com educação de qualidade, sabemos nós, mudaria todo esse quadro. Dizem que a educação liberta. E o indivíduo livre não se deixa domar. Para que haja esta transformação, não seria necessário nenhuma estratégia mirabolante, milagre ou rios de dinheiro. Seria sim, um grande desafio elevar a sua qualidade e adequar o ensino a era da informação. Mas não impossível. Obviamente seria necessário o interesse coletivo pela mudança, a criação de um novo modelo de gestão associado a profissionais competentes, motivados e com melhores condições de trabalho.    
Sem opção de uma vida profissional digna, os nossos jovens são marginalizados pela sociedade e pelo mercado de trabalho. Sem emprego e sem acesso ao mundo informatizado e ainda sem uma consciência critica sobre a valorização do ser humano, numa sociedade em que se prioriza quem detém poder e riqueza, abrem-se as portas do submundo. As drogas, um mercado em expansão, requisita estes jovens que rapidamente adquirem o que acham ser essencial à vida: dinheiro e poder. E assim, a violência se dissemina e bate a nossa porta diariamente. Já não mais podemos andar sozinhos, sair com algo de valor, sacar no banco o nosso salário, dirigir com os vidros abertos, ficar na calçada conversando com um amigo, já não mais podemos sair de casa, tampouco ficar em casa. Estamos condicionados a ter medo de tudo. Medo da hora, medo de ciclistas, de motoqueiros, medo de chegar, de ir, de ficar, medo até da aparência das pessoas. Cercamo-nos de cuidados e de tecnologia para evitar que ela chegue até nós, mas é inevitável. Estamos praticamente a mercê do acaso, da sorte. A tendência é cada vez mais nos isolarmos, sair apenas o necessário. Enquanto isso, as autoridades preferem construir mais presídios a escolas e gradativamente, percebemos claramente a sua evolução com o passar dos tempos.
E nós, aonde vamos?

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

Foz do Rio Jaguaribe - Fortim - Ceará

Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

A fruta preferida


           
         O colorido das barracas, o emaranhado de gente não me seduzia tanto quanto o tipo de linguagem utilizada ali. Cada um dos que vendiam usavam uma estratégia própria, particular, para seduzir o comprador. Embora se saiba que numa feira livre nem sempre o produto é de boa qualidade, mas, para eles, nos seus discursos, as frutas estão sempre fresquinhas, doces, suculentas, de excelente procedência e com ótimo preço.  Eu apenas ouvia a relação de adjetivos e elogios que eles apresentavam e seguia em frente; eu sabia e procurava a minha fruta preferida. Naquele tempo, ela não era encontrada facilmente, como hoje, na região em que moro. Era uma fruta de estação e aproveitando um passeio a casa de parentes ganhei esse presente: Passear na feira livre, num domingo de manhã e comprar a fruta que eu quisesse. A princípio, não era um programa muito divertido, mas, para uma criança de doze anos como eu e estando, pela primeira vez, numa cidade grande, tudo era novidade.
         Finalmente, chegamos à barraca das melancias madurinhas, vermelhinhas e suculentas. A gula me fez escolher uma das maiores, portanto, uma das mais pesadas. Descobri isso depois que soube que todos os que foram, ganhavam de presente a sua fruta favorita, mas tinham que trazê-la até em casa. Seria justo se eu não fosse uma menina tão raquítica, pequena para a minha idade, se eu tivesse sido a última a escolher e não a primeira e se não tivéssemos que tomar condução até em casa. Abracei-me á fruta e comecei a andar. A cada parada que o grupo fazia escolhendo outras eu a colocava no chão sentindo os meus bracinhos já cansados até pela dificuldade em segurá-la, pois não me deram sacolas. Mas eu pensava:
         - Até o ponto do ônibus vai ser difícil, mas eu aguento. Depois eu coloco ela no assento do meu lado e tudo fica bem.
         Porém, nem tudo o que planejamos sai exatamente como o programado. Além de chegar muito cansada, não tinha lugar para sentar no ônibus. Ele não estava exatamente lotado, o seu corredor estava livre, mas as cadeiras estavam todas ocupadas. Coloquei a melancia no chão e botei o pé em cima para que ela não saísse do lugar com o movimento do carro. Não deu certo. Não sei se era por que, até então, eu pouco tinha andado em transportes coletivos e não sabia as manhas de me segurar bem; a impressão que me deu foi que o motorista estava atrasado, portanto com muita pressa, ou estava de sacanagem comigo percebendo a minha inexperiência em realizar tal aventura.
Ele arrancava bruscamente e freava mais bruscamente ainda e a minha perninha fina não conseguia imobilizar a fruta. Achando ser mais fácil porque estava protegida entre dois adultos, ergui-a do chão e abracei-me novamente a ela. Na primeira arrancada do veículo, perdi o equilíbrio com o peso que segurava e fui empurrada para trás levando comigo a pessoa que “me protegia” pelas costas. Ela, com as mãos desocupadas, conseguiu se segurar e sair do caminho para que eu passasse numa carreira desenfreada, de costas, segurando uma melancia enorme. Achei que alguém me seguraria, mas me enganei. Fui surpreendida com uma freada brusca e igualmente arremessada para frente na mesma carreira desequilibrada de antes. Eu tinha que correr, não conseguia parar e se conseguisse, seria uma queda de grandes proporções. Na agonia, tentando encontrar um ponto de equilíbrio, ouvia as risadas dos passageiros seguidas de:
         - Solta a melancia, menina! Segurada a ela você não vai conseguir.
         As risadas se transformaram em gargalhadas e eu sendo jogada para frente e para trás a mercê do motorista e ninguém fazia nada para me socorrer, nem mesmo os meus parentes patrocinadores. Até que finalmente, numa parada para uma pessoa descer, alguém me segurou e pude olhar envergonhada pelo vexame ali apresentado, para as pessoas que riam de mim e com olhar de raiva para os meus acompanhantes que não me salvaram.
A caminho de casa ninguém comentou o fato e não me perguntaram por que eu não a soltei para conseguir me segurar. Segui em silêncio sentindo-me a mais indefesa das matutas numa cidade grande. Se o tivessem feito talvez eu não soubesse responder. Mas se a pergunta fosse se a minha fruta preferida continuava a mesma, responderia, com muita certeza, que era limão ou qualquer outra de igual tamanho.

 Texto: Marta Adalgisa Nuvens

Cachoeira Buraco da Velha - Meruóca - Ceará

Imagem: Marta Adalgisa nuvens

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O encontro



            Vivinha fazia os últimos retoques com o seu batom na frente do espelho. Estava um pouco nervosa, apreensiva com o encontro de logo mais. Há tempos não sentia essa sensação gostosa, esse friozinho da barriga que sentimos quando vamos encarar uma situação desconhecida. Desde que se separara de seu vizinho nunca mais tinha inventado de se apaixonar. Tinha perdido o interesse depois de longos anos de convivência, de idas e vindas no relacionamento com o dito cujo. Morava cada um na sua casa é verdade, cada um com a sua vida também, mas o bem-querer ultrapassou a barreira dos vinte anos. Depois disso, Vivinha jurava ter sepultado o coração, como diz o poeta. Depois do final do seu romance, sobraram as lembranças, as saudades, as manias adquiridas e o tempo passou. Agora, com seus cinquenta e três anos, ela percebeu que se havia enganado. A vontade de ter alguém por perto lhe dizendo palavras melosas e lhe fazendo dengo estava evidente. Sabia que seria um tanto difícil pelas barreiras que ela criou e pelo estereótipo do amante/companheiro que ela havia sonhado. Queria uma relação tranquila, alguém que lhe passasse segurança, elevasse a sua autoestima, fosse bom companheiro e lhe fizesse rir. Ah! E precisava ser educado e cavalheiro também. Chega de homens mal educados, egoístas e machistas. Queria ser feliz. Agora ela questionava se já o tinha sido.
            O encontro estava marcado e pronto. E se tudo corresse bem, em breve ela colocaria a felicidade em dia. Estes anos de solidão cicatrizando as suas feridas a tinham feito uma mulher mais madura, mais seletiva e a todo custo procuraria não comparar o seu novo pretendente ao seu antigo amor. As pessoas são diferentes por mais que pareçam iguais e começar tudo em cima de comparações não seria muito saudável. Portanto, prometeu a si mesma esquecer o passado e entrar nesta nova relação livre de preconceitos, de coração e alma abertos.
            Em tudo essa nova situação era diferente. Ela e José Roberto nunca tinham se visto antes. Os contatos foram feitos, até então, pela internet. Eles se encontraram num chat de bate-papo, a conversa rendeu e resolveram se conhecer melhor. Depois de muita conversa e de troca de informações mútuas, resolveram trocar os telefones e hoje seria o grande dia. Sabiam mais ou menos das suas aparências físicas porque se descreveram, mas nem fotografias se permitiram trocar. Não fora necessário. Ambos eram adultos, aposentados, ele com cinquenta e seis anos, viúvo, os filhos casados, netos até, ambos não tinham a intenção de enganar nem de se deixar enganar. Encontrar-se-iam às treze horas em frente à estação do metrô, pois ele estava impossibilitado de dirigir por causa de um problema na coluna e o primeiro encontro é sempre bem melhor em lugares públicos. Combinaram a cor da roupa, caso a descrição não fosse suficiente para um pronto reconhecimento.
            Exatamente no horário marcado, Vivinha chegou ao ponto combinado. Antes de descer do carro ela deu uma boa olhada nas pessoas que estavam ou passavam pelo local e, particularmente, ninguém lhe chamou a atenção. Ninguém parecido com a descrição de José Roberto. Esperou um pouco sentada ao volante, mas logo pensou que seria melhor descer e ficar circulando pelo jardim. Assim, disfarçava o nervosismo e ele a veria com maior facilidade. Encontrou um estacionamento um pouco distante e veio caminhando davagarinho tentando se fazer notada. Mal chegou em frente ao canteiro central, ouviu o seu nome.
            - Vivinha? Moça, você é Vivinha?
O seu coração bateu apressadamente, suas mãos suaram, as pernas tremeram, mas, conseguiu abrir um sorriso e se virar na direção do som. Ela, anteriormente, havia se programado para as surpresas. Por mais que se saiba da pessoa, sem nunca tê-la visto, alguma coisa sairia diferente. E que diferença! E que surpresa Vivinha teve! Seus olhos se depararam com a imagem de um homem imensamente gordo, envelhecido, aparentando uns 75 anos, cabelos desgrenhados, forçando um sorriso amarelo em que se percebiam seus dentes, igualmente amarelos. A moça sentiu o sangue gelar nas veias, o seu sorriso sumiu, engoliu em seco e não soube o que dizer. Ele se aproximou e tomando as suas mãos a beijou de um lado e do outro do seu rosto e ela percebeu, além de tudo, um cheiro muito forte de sarro de cigarro.
- Minha santinha milagrosa que nunca me abandona, o que eu faço? O que eu digo? Gritava ela para dentro de si mesma.
A primeira reação foi de correr, sumir dali. Em nada a descrição dele coincidia. Apenas a voz era a mesma. Conseguiu pronunciar um “Como vai, você” e, aos poucos foi reagindo ao impacto.
- Calma, já que você se meteu nessa, seja pelo menos educada. Pensou ela.
            Meio sem jeito, ela apontou a direção do estacionamento. Ele olhou na direção indicada por ela e disse:
            - Vixe! Ta muito longe. Você pode ir buscá-lo?
            Mesmo achando que ele estava sendo rude, ela saiu e voltou em seguida, parando na frente dele. Ele desceu a calçada com dificuldades, andando lentamente, arrastando os chinelos já gastos pela idade. A cada descoberta que ela fazia, era maior o seu desencantamento. Ele abriu a porta, entrou com dificuldades e ela saiu devagar.
            - Desligue o ar, abra os vidros, gosto de vento no rosto. Você já escolheu o restaurante pra onde vamos? Vou logo dizendo que não gosto de periferias. Disse ele em tom autoritário.
            Ela, já murcha pela decepção, pensou em retornar e deixá-lo no ponto do encontro, fugir dali e esquecer que um dia havia se interessado em conhecê-lo, mas a curiosidade falou mais alto. Iria agora até o fim. Queria ver ou saber o motivo de toda aquela arrogância. Antes mesmo que ela respondesse alguma coisa, ele continuou:
            - Um dia desses fui com um amigo a um bom restaurante no Meireles. Lá tem uns bons. Você pode ir pra lá. Eu só como se for nele, se for peixe á delícia e se o peixe for branco.
            Ele dizia isso e nem reparava no semblante de decepção de Vivinha. Ela só ouvia e seguia em direção ao bairro indicado que ficava do outro lado da cidade. E ele continuava:
            - Ô cidade provinciana! O asfalto é terrível. Tá magoando a minha coluna! Dirija mais devagar... quero chegar lá inteiro!
            Nessa ladainha de reclamações e resmungos, chegaram ao local indicado. Os restaurantes por onde passaram estavam lotados. Não havia aonde estacionar. E mesmo assim ele insistia que só queria aquele, que ficava numa esquina, mas já não lembrava os nomes dele nem da rua. E ela, coitada, a dar voltas e mais voltas no quarteirão que ele apontava achando ser aquele procurado. Depois de mais algumas voltas, ela, já irritada, parou o carro e disse:
            - José Roberto, nós só podemos ir se for pra esse? Têm tantos outros nessa cidade! São duas horas, hora de almoço, todos estão lotados e a gente procurando esse restaurante imaginário? Se você quiser, lhe deixo em casa, mas esse eu não procuro mais.
            Ele olhou para ela meio surpreso com a sua reação, pois em todo o percurso ela havia concordado em tudo, e disse meio sem graça que ela escolhesse outro. A capricho, ela o levou a um dos melhores restaurantes de frutos do mar da cidade. Em frente ao mar de onde se via toda a orla e se recebia uma brisa gostosa. Parou o carro e o manobrista veio ao seu encontro.
            - Você não vai entregar a esse homem? Vai? Esse povo nunca trata o carro da gente como deveria. É um bando de irresponsável. Continuava ele.
            Ela nem mais respondeu. Desligou o motor, desceu do carro, entregou a chave ao homem e se encaminhou para a calçada. Olhou para trás apenas uma vez e viu que ele a seguia andando com dificuldade. Ela entrou no restaurante, sentou numa mesa e ficou esperando que ele chegasse. Um misto de raiva e decepção era o que ela sentia no momento. Raiva dele por tê-la enganado criando um perfil imaginário e raiva dela por ter acreditado na conversa dele. Mesmo assim, ela ainda tentava diminuir a sua culpa, pois sempre acreditara em que, à proporção que vamos envelhecendo, vamos ficando mais sábios, mais coerentes, mais honestos, mais verdadeiros. Ele, um homem com mais de cinquenta anos deveriam ter aprendido isso ao longo da vida, ou, a pelo menos e no mínimo, falar a verdade, principalmente quando essa verdade estará prestes a aparecer. Consolava-se a si mesma degustando uma boa dose de rum que havia pedido. Ele havia chegado ofegante e sentado a sua frente. Estranhamente estava calado e a olhava fixamente. Repentinamente, fez a pergunta esperada:
            - Você acha que entre nós houve química?
            Ela desviou os olhos do mar, olhou nos olhos dele tranquilamente e disse com toda a sinceridade da alma:
            - Definitivamente, não.
            Mas a sua vontade era a dizer tudo o que pensou e observou sobre ele ao longo da tarde. Que ele estava velho demais para ser o seu companheiro ideal; que ele fumava e que ela era asmática, sem contar que dizem que beijar um fumante e um cinzeiro é a mesma coisa; que ele era grosseiro, mal-educado, esnobe, preconceituoso, mentiroso, não gostava de praia, não gostava de jogo, não gostava de acordar cedo, não gostava de gente, pelo visto nem dele mesmo; pois o seu mau humor se percebia a quilômetros de distância. Em resumo, não gostava do que ela gostava. A sua vontade era de lhe dizer que, para ela, pouco lhe importava se ele havia morado no Rio, em Ipanema, em Paris ou Amsterdã; que o caráter das pessoas não se mede pelo bairro, cidade ou pais em que moram... mas estava cansada. Apenas o olhou e respondeu. Por sorte, nem mais outra pergunta foi feita e nem um tipo de insistência foi esboçada. Apenas chamou o garçom.
            Apesar de, a princípio relutar em comer, alegando que o peixe não era tão branco como devia ser todo o peixe que se preza, ele bem que gostou. Devorou tudo rapidamente ainda reclamando do calor, do sol, do tempo, do atendimento, da minha bebida, da demora do cafezinho... de tudo. Até do menino de rua que pedia um trocado enquanto os seguia para o carro.
            A volta foi tranquila. Ela resolveu ficar calada, ouvir uma música e deixar terminar esta aventura. A raiva e a decepção do início foi se transformando em vontade de rir. Rir dele e do seu exagero em querer demonstrar ser uma pessoa que realmente não era; rir dela mesma e da sua ingenuidade de ter acreditado no que ele lhe dissera nos últimos dias. Quando o carro parou, ele não desceu sem antes perguntar se poderiam ser amigos e quando sairiam juntos novamente. Ela mecanicamente respondeu um “sim” e um “qualquer dia” e foi embora. A caminho de casa, pensava na hora que contasse essa aventura aos seus amigos, a reação de cada um deles e nas boas gargalhadas que dariam juntos mangando deles mesmos e das situações que a vida oferece. E que venham as próximas aventuras!
           
           
Texto: Marta Adalgisa Nuvens

Teatro José de Alencar - Fortaleza - Ceará

Imagem: Marta Adalgisa Nuvens