terça-feira, 28 de setembro de 2010

O homem que via demais.


            Clarindo era o seu nome. Homem de poucas palavras. Ouvia mais do que falava e quando o fazia, era com aquela sua voz mansa, pausada, sem pressa. Muitos o escutavam pela riqueza de detalhes com que ele contava seus causos. Diziam que ouvi-lo era como se presenciassem a cena. Outros diziam que ouvi-lo dava sono. Mas ele não se importava. Ouvia a todos e, para não desagradar, ou não ter que argumentar, concordava com tudo balançando a cabeça afirmativamente. Poucas vezes intervinha na conversa. Ele apenas ouvia. Um dia, Clarindo sumiu por uns tempos e quando reapareceu estava cheio de novidades. Passara dois meses andando pelo interior, visitando as pessoas fazendo o recenseamento do governo e nesse período vira uma coisa que precisava ser contada. Não sei se acreditada... mas contada.
            Ele conta que esse fato aconteceu, numa casa isolada, num lugarejo chamado Saco das Pedrinhas. Ele afirma que vinha descendo uma ladeira que dava em direção à casa, já quase meio-dia, com muita fome, o sol causticante queimava a sua pele já morena e o suor lhe escorria pelo rosto (exatamente com esses detalhes) quando ouviu uns gritos e gargalhadas de crianças. Chegando mais perto, percebeu que crianças, trazendo livros e cadernos, como quem voltavam de uma escola, estavam parados na frente desta casa e jogavam muitas pedras nela.
            - Ei, meninos... não façam isso. Respeitem o dono da casa... já pensaram que pode ser uma pessoa idosa? Falei, andando em direção aos estudantes.
            - Aí num mora ninguém, não Seu Zé. Morava D. Maria parteira, mas ela já morreu. Disse um deles.
            - Mas não façam isso! As pedras estão quebrando o telhado, as portas... o dono não vai gostar! Melhor vocês irem pra casa. Continuei.
            - É casa abandonada, seu Zé. Depois do que começou a parecer aí... ninguém chega mais perto. O Sr. não sabia, não? Aí aparece uma visagem e todos têm medo de passar por aqui. Melhor o Sr. não ficar aqui também.Disse o maior deles.
            Olhei para o menino, olhei para a casa e vi que ela tinha um alpendre meio esburacado de tanto ser apedrejado, mas ainda com sombra fresquinha. O calor era enorme e pensei:
            - Meninos bestas acreditam nessas histórias. Tá vendo que isso não existe!
            E me encaminhei em direção a ela, já tirando das costas a mochila pesada cheia de mantimentos e papéis. Eu sempre andava prevenido. Sabia que nesse sertão brabo pouca gente me oferecia um “de comer”, não por avareza, mas por insuficiência mesmo. Todos eram muito pobres e com as casas cheias de filhos. Às vezes, eu até doava um pouco da minha comida por sentir pena de tanta pobreza e fome.
            - Ei, seu Zé! Num vá não... a coisa ... é valente! Gritaram os meninos.
            Não me importei. Caminhei em direção a casa ignorando o conselho dos meninos. Estava cansado. As botas doíam nos meus pés, as costas estavam cansadas do peso da mochila e a fome era intensa. Aquele alpendre e o sossego do lugar estariam ótimos para fazer uma merenda, tirar um cochilo e seguir viagem. Cheguei, coloquei a mochila no chão, sentei-me na calçada meio alta, abri a bolsa e tirei de dentro dela um chinelo já meio velho, mas confortável. Descalcei as botas, meti os pés nas chinelas, massageando-os. Senti o ar fresco no meu rosto e olhei na direção dos meninos para chamá-los a me ajudarem a procurar uns gravetos para fazer um fogo. Faria café e na sacola tinha biscoito suficiente para todos. Mas não havia mais ninguém. Eles tinham sumido.
            - Meninos danados. Toda criança é assim. Vive arrumando travessuras pra fazer. Me lembro de quando era criança também quando andava botando cana pros engenhos da região no velho burro trigueiro. Mas isso é outra história. Eu pensei.
            Levantei-me devagar e comecei a procurar a madeira para fazer o fogo, quando ouvi o som de alguém caminhando dentro de casa, como se arrastasse as chinelas no chão. Parei. Ouvi novamente e resolvi olhar por um dos buracos feitos pelas pedras na parede de taipa. Cheguei devagarzinho, pisando leve para não fazer zoada e botei o meu olho no buraco. O que eu vi, não podia acreditar. Andavam pela sala, levantando poeira duas sandálias sem os pés. Elas andavam sozinhas e direitinho, como se pés invisíveis estivessem dando o rumo das passadas. Fiquei paralisado olhando a cena e notei que elas agora vinham ma minha direção. Achei que a parede nos separava, mas não, elas a atravessaram se achegaram bem perto de mim e pararam. Iguaizinhas, como se os pés que deveriam estar ali dentro estivessem juntinhos. Virei-me e fiquei olhando para elas sem saber o que fazer. Lembrei-me das histórias contadas pela minha mãe sobre as almas penadas que viviam assombrando o povo, conversa em que eu nunca acreditei. Lembrei-me também que palavras deveriam ser ditas para que o fantasma dissesse a que veio. Talvez uma promessa feita e não paga ou algum mal causado a alguém... Tomei coragem, e disse:
            - Quem pode mais do que Deus?
            Nada. Elas continuavam imóveis e eu sentia que o dono delas olhava fixamente pra mim. Mas, não sou homem de duas conversas. Esperei um pouco e repeti a pergunta:
            - Quem pode mais do que Deus? Posso ajudar? Me conte o que lhe aperreia!     
            Notei que elas se mexeram. Foram se erguendo no ar e ficaram mais ou menos na altura da minha cintura. Esperei ouvir alguma voz, algum pedido, mas elas investiram sobre mim e me batiam por todo o corpo. Eu tentava me defender, mas não sabia como me livrar delas. As pancadas eram fortes, estava com os braços vermelhos e elas não paravam de me bater.
            Meus amigos... num contei conversa. Não sou homem mole, não tenho medo e nem acredito dessas coisas, mas não tinha outro jeito a não ser correr. Saltei da calçada num pulo e ganhei a capoeira ainda sentindo as pancadas nas minhas costas e pernas. Corri uns cinquenta metros e senti que elas pararam. Parei também e olhei pra trás. Nada. Estava tudo no mais perfeito silêncio. E agora... cadê coragem de pegar as minhas coisas? Esperei uma meia hora pra ver se passava alguém pela estrada que me ajudasse a voltar lá, mas ninguém passou. Não que eu tivesse com medo, não. Tinha receio era de estar incomodando. Como sou cabra macho e num levo desaforo pra casa, voltei e fui pegar as minhas trouxas. Peguei tudo e nada mais aconteceu. Mas também, num demorei muito não. Deixei pra calçar as botas um pouco mais adiante na sombra de uma moita pra não desagravar a pobre da alma penada. Nunca mais passei por lá, mas dizem que elas continuam a surrar quem se mete a besta de sentar naquele alpendre. E juro por Deus... isso é a mais pura verdade!

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

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