segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Uma lição de vida

                       

                              
            Tem coisas na vida que nunca conseguimos esquecer. Passam-se os anos, crescemos, tomamos as rédeas da vida, mas elas nunca se apagam, ficam sempre guardadas na nossa memória e, às vezes, até mergulhamos nelas como uma forma de rejuvenescimento ou, quem sabe, como forma de retornarmos as bases que nos tornaram fortes.
            Estávamos chegando. O vento soprava meus cabelos através da janela aberta. Meu pai dirigia devagar, com muita atenção no trânsito, sem se importar com a minha ansiedade de chegar logo ao shopping, ver montanhas de brinquedos, brincar no parquinho perto da fonte luminosa, comer chocolates e mais chocolates e finalmente, escolher o brinquedo que eu quisesse. O primeiro brinquedo que poderia escolher não podia ser qualquer um. Teria que ser muito especial; colorido, macio, bonito e que causasse inveja a Aninha por não possuir um igual. Estou com oito anos e nunca escolhi um brinquedo. Sempre escolhiam para mim, dependendo do preço e apenas nas duas datas mais importantes do ano: natal e meu aniversário. Mesmo assim, eu achava muito bom ganhar presentes. Saia correndo para mostrar aos meus vizinhos e a minha avó que morava pertinho de mim.
            Naquele tempo era muito bom. Não tínhamos dinheiro, mas morávamos numa viela cheia de crianças onde eu tinha muitos amigos e morava perto da minha avó. Minha avó me foi sempre muito especial. Ela era carinhosa, meiga, paciente com minhas travessuras, sempre me defendia das broncas do meu pai e sempre me acolhia no colo macio quando não estava por perto para me defender das brigas.
            As brigas eram constantes. Geralmente liderava as brincadeiras de rua com toda a meninada o que me fazia constantemente ter que mostrar o meu poder de domínio. Era a lei do mais forte e os mais frágeis obedeciam. Nem que para isso a minha mãe vivesse sempre tratando dos meus arranhões, inchaços, galos na cabeça e dedos esfolados de topadas nas pedras. A minha liderança ia além da viela. Embora eu fosse mandona e birrenta, todos adoravam me ter por perto. As minhas brincadeiras eram mais divertidas.
- Chegamos, disse meu pai, ainda contornando a curva que dá acesso à avenida.
Olhei a rua meio atordoada acordando dos meus pensamentos.
O dia estava claro, a rua cheia de pessoas, de carros, de sons. O meu coraçãozinho batia apressado pensando em todo o encanto que seria este dia. Finalmente comprar o meu primeiro brinquedo, escolher sozinha aquele que eu quisesse sem ter que pensar em nenhuma condição que me levasse a não querê-lo.
           O shopping era enorme. Parecia uma cidade pequena cheio de ruas e de pessoas entrando e saindo das lojas cheias de pacotes. Tudo era muito limpo, as paredes, na sua maioria, eram de vidro de todos os formatos e cores. O corredor central parecia uma praça com vários bancos grandes de madeira e perto de cada banco pequenas barracas em que se vendia de tudo: artesanato, revistas e jornais, comidas típicas, perfumaria, lembrançinhas. Na praça central, além de uma fonte luminosa bem bonita, tinha também um pequeno parque cheio de crianças brincando nos vários brinquedos ali instalados.
           Eu estava encantada com tanto brilho, tantas luzes e tantas lojas bonitas com moças simpáticas esperando na porta dispostas a mostrar todos os brinquedos e a vender um a qualquer custo. Eu não tinha idéia do que compraria. Sabia apenas que seria, com certeza, uma coisa muito especial, que me ajudasse a suportar a falta que os meus amigos me faziam nesse bairro e nessa casa novos, já que eu não tinha conseguido trazê-los por mais que tentasse; mostraria apenas a Aninha como se fosse um troféu que há muito tempo queria conquistá-lo.  Entramos e saímos, fomos e voltamos, paramos, perguntamos, olhamos várias e várias vezes. Eram tantas opções, tantos brinquedos que alguns, eu nem saberia como usá-los direito. Tinha bonecas que falavam, andavam que tinham o seu próprio enxoval completinho inclusive com a sua casinha e seus móveis. Tinha cachorrinho que latia, andava, levantava a perninha para fazer xixi; tinha uma infinidade de bichinhos que funcionavam à pilha ou à corda que andavam, davam cambalhotas, sorriam, choravam, falavam; tinha jogos, bolas, petecas, bicicletas, material de pintura, enfim, tinha tudo o que se imaginasse. Como qualquer criança, eu cheguei sem saber o que comprar, agora, diante de toda essa variedade, a minha cabeça ficou ainda mais confusa.
        - Vamos ver se você se decide Simone, não temos a tarde inteira só para escolher um brinquedo. Dizia meu pai, acho que mais cansado de tantas idas e vindas do que mesmo aborrecido com o passeio.
       - Deixa a menina escolher sossegada, homem. Você não sabe como ela é? A cada dia tem um pensamento diferente! Imagine aqui, com esse mundão de coisas para se ver. Até eu estou confusa! Disse a minha mãe.
       -     Papai, me compra um chocolate! Estou com fome.         
              -     Fome nada, eu te conheço! Acrescentou o meu pai sorrindo.
     Sentamos ao redor de uma mesinha na praça de alimentação e enquanto meu pai escolhia o que iríamos comer, a minha mãe me dava conselhos sobre qual brinquedo seria mais útil, mais resistente, menos barulhento e, é claro, mais barato. Fizemos um lanche rápido e voltamos à maratona nas lojas a procura de um brinquedo que somasse a quantidade maior de qualidades exposta pela minha mãe.
       Depois de várias horas, finalmente algo me chamou a atenção meio escondido em um cantinho de uma loja. Achei-o lindo e apontei-o para a minha mãe. Minha mãe foi direto a uma bicicleta vermelhinha que também estava naquela direção e começou a examiná-la procurando algum defeito de fabricação. Examinada com cuidado, ela foi liberada e aprovada para que eu a comprasse.
        -  Moça! Quanto custa essa bicicleta? Perguntou mamãe à atendente.
Foi então que eu percebi que ela não tinha entendido o meu gesto. Eu havia lhe mostrado um urso de pelúcia que estava naquela direção. Ele era lindo. Todo preto e branco, imenso, macio e parecia que me acompanhava com os olhos. Tirava os olhos dele e disfarçadamente olhava para outro lado; tentava surpreendê-lo olhando de repente novamente e lá estava ele, olhando para mim como se me pedisse para ir comigo.
        - Mamãe! Não é a bicicleta... é aquele urso  de pelúcia!
        Minha mãe ficou surpresa com tal escolha. Tinha ouvido durante vários dias que seria uma escolha especial de um presente também especial. Bem, coisa de criança. Pelo menos ela não teria a quem reclamar, a quem atribuir os defeitos depois que ele se tornasse velho, como sempre aconteceu com todos os seus brinquedos. Ela o havia escolhido. Pensando assim, ajudou-me a resolver tudo e voltamos felizes para casa. Eu, por ter escolhido um urso que olhou para mim com seus olhinhos de pedido, olhinhos de carinho... Seria o meu companheiro. E os meus pais, porque finalmente aquela tortura de me seguir pelos corredores horas seguidas sem saber nem o que compraria, tinha acabado. E o que era melhor: Eu estava feliz.
      Eu o ensinaria tudo: a andar, a falar, as minhas brincadeiras prediletas... Como nos desenhos animados que eu assistia. Sim... seria o meu companheiro. Ele não substituiria toda a meninada do meu antigo bairro, isso seria demais, mas eu o tornaria o meu assistente obediente e amigo como os outros foram.
       Os dias se passavam e eu não conseguia nenhum progresso. Ele não aprendia nada. Mamãe sugeriu que talvez fosse a falta de um nome e o batizou de Magali. Nome da personagem de um livro que ela acabara de ler e que gostara muito. Eu o chamei então de Rabicó, o porquinho danado do Sítio do pica-pau amarelo. De nada adiantou a nossa tentativa. Ele ficava sempre olhando o que eu fazia, escutava atentamente o que eu dizia, mas nada aprendia. Dentre outras coisas tentei suborná-lo. Ofereci-lhe mel. Todos os ursos gostam muito de mel. Pelo menos Zé Colméia gosta muito. Prometi-lhe passeios na garupa da minha bicicleta, levá-lo à escola qualquer dia para que ele conhecesse os meus colegas, prometi-lhe até que iríamos ao parque toda tarde brincar no melhor brinquedo: o escorregador. Nada. Ele só olhava para mim. Durante todos esses dias ele nem tinha aprendido a falar ainda. Eu que tinha que falar tudo sozinha.
       Um dia, já cansada e com raiva de tanto repetir, repetir, repetir, resolvi pedir ajuda. Levaria para que a minha avó o examinasse. Como ainda não tinha pensado nisso? Ela saberia o que fazer. Ela sempre sabia o que fazer. Ela era sábia e usando de toda a sua sabedoria e paciência, saberia como torná-lo esperto também. Vovó o examinava bem devagar. Olhou as suas pernas, pois eu queria que ele andasse comigo, corresse, andasse de bicicleta, jogasse futebol... que ele fizesse tudo o que eu faço e para isso, teria que ter as pernas fortes. Olhou os braços, as orelhas, a boca... será que o defeito não estaria na boca? Pensei. Não! Se assim fosse, ele poderia pelo menos andar. Eu não tirava os olhos dela. Observava tudo com o maior interesse, afinal era a vida de Rabicó que estava em jogo... ou a minha? Ela fazia cara de preocupada, dava tapinhas nele, balançava a cabeça negativamente, mordia os lábios, dizia palavras baixinho como que balbuciando uma oração... Eu a admirava e tinha certeza que daria certo. Ela era a mulher mais esperta que eu conhecia.
       Depois de algum tempo, ela deixou Rabicó em cima da cama, veio sentar-se pertinho de mim e oferecendo-me o seu colo falou:
      - Filha, sei que depois que vocês se mudaram você está se sentindo muito sozinha. Seus amigos ficaram aqui, eu fiquei aqui e você se sente como se fosse a única menina no mundo. Mas não é assim. Você vai se acostumar, fazer novas amizades, aprender novas brincadeiras, me visitar sempre que quiser e tudo vai voltar ao normal. Seria bom que déssemos uma vida a Rabicó, mas seria bom apenas pra você que teria um amigo bem diferente para exibi-lo aos seus amigos e para que eles invejassem você. Mas para ele... Será que seria assim tão bom? Quando você crescer perceberá que gradativamente construímos a nossa vida e que ela não ficará do jeito que nós queríamos. Ela terá coisas boas e coisas ruins que nós não poderemos evitá-las. Poderemos preferir as boas e que para isso, teremos que atraí-las para perto de nós. Como poderemos fazer isso? Fazendo coisas boas aos outros, aprendendo a gostar deles como eles são e a respeitá-los por eles serem diferentes de nós. Se não podemos ajudá-los não devemos atrapalhá-los. Aprender que o que somos é mais importante do que o que temos. Que ganharemos muitas coisas, mas perderemos muitas coisas também e isso fará com que nos tornemos mais fortes. Hoje, você chora por um brinquedo que não deu certo, que não correspondeu ao que você esperava dele, ou seja, pela decepção de ter escolhido errado. Fará isso outras vezes na vida. Tenha sempre o cuidado de se enganar ou de se arrepender por coisas que você possa refazê-las e ter a sensatez e a humildade de reconhecer o erro. Errar, arrepender-se e recomeçar faz parte do ser humano. Ninguém é perfeito. Lembre-se sempre: Se só plantarmos o bem, certamente só colheremos o bem.
       Naquele momento, a minha cabeça de menina não se importou com estas palavras, mas com o passar do tempo, eu percebi que elas me ajudariam a me tornar quem sou hoje. Guardo-as comigo até hoje e sempre que tropeço, lembro-me delas e guio-me por elas.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens




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