quarta-feira, 26 de junho de 2013

Escolhas


Finalmente, chegara o dia. Após várias tentativas frustradas procurando a mulher perfeita, pois pessoas perfeitas não existem, a moça bonita da outra margem do rio viria visitar o rapaz que morava no velho casarão. Isso não seria nada demais se o rapaz do velho casarão há muito tempo, não quisesse isso, não esperasse por isso, não sonhasse com isso e não desejasse urgentemente uma companhia. Para a sua felicidade e nervosismo, a moça do rio sairia além dos limites do seu reino e viria conhecer a sua plantação de sonhos. E ele, naquela manhã, se vestiu de alegria para esperar tal visita. Separou além dos sonhos plantados em palavras que a emoção lhe havia dado, a sua coleção de sementes de desejos guardadas de várias épocas, de várias vidas; pequenas mudas de objetivos que tinha a intenção de realizar em um futuro próximo, o terreno que usaria para fazê-las crescer fortes e saudáveis... E deixou em aberto a proposta da possibilidade de regá-las com as águas do seu rio.
Diante da sua timidez e do nervosismo da espera, melhor não contar com isso. Teria medo, certamente, de parecer precipitado e interesseiro. Afinal, a moça ribeirinha não o conhecia bem e não desconfiava do seu interesse por ela desde aquele em dia que se encontraram para assistir ao embate de dois reinos vizinhos. Isso foi há tanto tempo... Agora ele lembrava como aquele dia ficara distante e não havia percebido por causa da sua lembrança ainda tão viva dentro de si. Não, não falaria em parceria. Não correria o risco de mostrar o seu projeto de reflorestamento pessoal. Será se a moça do rio teria interesse em participar de tal projeto? Se não, não lhe seria interessante utilizar as águas do seu rio... Não, não lhe teria muita vantagem... Mas se assim não fosse, pensava ele, reflorestariam juntos as duas margens das duas vidas. Construiriam uma ponte para um acesso mais fácil da felicidade que sentiriam juntos e fariam intercâmbio de várias espécies de sentimentos que só se sente quando partilhados com alguém. Enfim, objetivos que seriam obtidos através da maturidade de ambos e da vontade de acertar após inúmeros erros cometidos. Sabiam que ambos haviam se guardado, ou, pelo menos ele, para que o próximo plantio fosse mais coerente, partilhado, diversificado, alegre, mais duradouro e com frutos mais saborosos.
         E a hora chegou, ou melhor, ela chegou. E ele driblando o nervosismo, mostrou relíquias de vários passados. Lembranças de outras vidas em que se julgava feliz e que hoje, depois de vários invernos percebeu que eram apenas lembranças e algumas nem tão agradáveis assim; mas que lhe serviram para pintar com outras cores o seu futuro. Deixou à mostra também, a sua forma simples de ser. Até simplória demais, acham alguns, mas verdadeira e descomplicada. Ingênua até, mas condizente com o seu povo e as suas raízes. Há quem prefira outras qualidades, mas ele segue as palavras do sábio: “Seja sempre você porque para o outro, você será sempre visto como ele quer que você seja”.
         E para tristeza e desapontamento do rapaz do casarão, foi exatamente isso que aconteceu. A moça do rio não o viu como ele realmente era, ou, como ele, ela havia criado um estereótipo de alguém baseado em sonhos e foi procurar rio a baixo outras possibilidades de futuro. E ele, mais uma vez, empacotou todos os sonhos novamente e guardou-os no fundo da alma. Quem sabe, num dia destes de sol, outras moças de outros rios aparecerão e o ajudarão a jogar nas águas do rio a sua solidão.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

terça-feira, 14 de maio de 2013

Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção

 

A  Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção é onde a História de Fortaleza começou; o próprio nome da cidade é uma referência a essa antiga fortificação.
O Forte foi construído pelo capitão holandês Matias Beck em 1649, e foi batizado Fort Schoonenborch. Situa-se a poucos metros de distância da Catedral de Fortaleza e do Mercado Central de Artesanato
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Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Herança de vovó



         Eu fiquei reparando no velório da minha avó. Primeiro no mundo que eu vejo sem defunto, sem ninguém chorando e se sem gabar o falecido. Nem a turma da calçada que, por falta de cadeira, ficava “de coca” fumando e falando da vida alheia. Nem Maria de Bia que chorava em baldes no enterro de gente conhecida ou não, botava uma lágrima.  Era chorava tanto e com tanto exagero que, às vezes, o dono do defunto a mandava se calar. Todos comiam, bebiam chá ou café conversando “acontecências” e nada de tristeza. Não tinham sorrisos, mas lágrimas que eram esperadas, nada. Nem da minha mãe, que, embora estivesse triste não conseguia chorar.
Todo morto que se preza, vira bom; as suas qualidades correm de boca em boca, os elogios, os exageros, verdadeiros ou não. Mas com ela, não. Ninguém tinha um elogio sequer. Nem eu. O mais próximo que cheguei, foi a um: “Ela era excêntrica, mas gostava dela”. E gostava mesmo. Foi através do uso da ironia gratuita, que ela espalhava para todo mundo, que descobri que poderia ser uma boa cozinheira. Ela dizia que quando eu caprichava, quando a comida saia direitinho, saia sem gosto, com gosto de palha.
- Lá vai!... a menina passa o dia na cozinha e a comida sai com gosto de nada! Era o que ela dizia, mas comia e eu tomava isso como um elogio. Se estivesse tão ruim assim, ninguém encarava, nem ela.
Andando pela sala, cumprimentando as pessoas, o que eu ouvia era:
- Sua avó era encrenqueira, brigou comigo duas vezes, mas Deus a tenha.
- Ela era uma falsa, desculpe a franqueza, mas não lhe queria mal.
- Ô mulher “ispridada” essa sua avó, num gostava dela, mas já de vocês...
E assim foi manhã a fora. Qualidades poucas e defeitos muitos, mas todos faziam questão de registrar a sua fala e a sua presença. Talvez se o cadáver estivesse presente, fosse diferente, houvesse respeito. Mas, como ela queria ser cremada e aqui, no nosso interior, não tenha disso, ficou mesmo em Salvador, cidade que escolheu para morar. Quem sabe lá ela tivesse amigos... pelo menos se sabia, da sua vizinha. Amizade, amizade não sei se era, mas elas se entendiam. Porque aqui... ninguém.
Com a desculpa da solidariedade, os vizinhos vieram todos nos dar os pêsames, mas, pesar nenhum foi observado neles. Vieram mesmo foi filar café da manhã, matar a metade do dia de trabalho, falar da vida alheia... inclusive da dela, coitada! Diziam até que era melhor a cremação mesmo, assim se queimava o veneno junto com a cobra. Veneno que agora ela não podia mais usar pra se defender.
         E o velório, se é que se pode chamar assim, durou pouco. Feitas as obrigações dos “solidários”, a vida voltou ao normal. Eu ao meu restaurante de comidas baianas que, por sinal, vivia cheio; e foi incentivado (sem que ela soubesse) por ela que me mandava sempre temperos e mais temperos para temperar a minha comida sem graça. Por conta da sua amizade com a vizinha, nada mudou. Ela continuou a me mandar os temperos da Bahia, como fazia vovó, e esse serviço de troca de receitas e de sabores não acabou. Diminuiu, é claro, mas sempre que surgia uma novidade na culinária baiana ou cearense a troca de idéias e de quindins era feita.
         E a última remessa chegou cheia de guloseimas. Pimenta de todas as cores para todos os tipos de carne, farinhas de todas as texturas, para todos os tipos de farofas e pirões e, entre elas, um pote de uma massa fina e acinzentada. Como era de costume, misturei alguns ingredientes juntos a esses e fui usando a agradando aos fregueses que a cada dia aumentavam.
         Um belo dia, entre os potes de conservas e temperos que acabaram de chegar, havia um envelope. Abri na certeza de que era mais uma receita nova. Mas, para a minha surpresa, era o atestado de óbito da minha avó e a explicação de que: aquele pote cinza que veio na remessa passada eram as cinzas dela que, em vida, ela queria que fossem espalhadas no sítio onde ela nasceu.
         Fiquei pasma, olhos arregalados, cor de defunto, pernas bambas, soltei no chão o envelope que acabara de ler, sentei na cadeira mais próxima. O remorso me deu um soco no estômago e um branco no juízo. Fiquei sem ar, sem fala. As pessoas perceberam e vieram ao meu encontro, e eu só conseguia dizer baixinho em meio às lágrimas:
         - Meu Deus! Comi a minha avó!

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

sexta-feira, 1 de março de 2013

Casarão do Horto

O Casarão do Horto é o Museu Vivo do Padre Cícero, instalado na antiga casa de orações, na colina do horto, em Juazeiro do Norte, Ceará. Bonecos de resina de poliéster em tamanho natural retratam cenas vividas pelo padre e pessoas ligadas a ele.
Imagem: Marta Adalgisa Nuvens

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Você

Eu lhe pedi para não me olhar assim com esse olhar profundo de quem lê o pensamento, os mistérios... meus mistérios. Olhar de descobertas que mergulha em mim, invade a minha alma e descobre os meus segredos.
Eu lhe pedi para não me sorrir assim com esse sorriso que me encanta, alegra o mundo e inunda os meus sonhos e minhas fantasias. Sorriso que afoga as tristezas, as mágoas, as desilusões e derrete o gelo mais sólido de todos os medos.
Eu lhe pedi para não me ouvir assim atentamente, com cara de quem sabe tudo, escutando todos os meus lamentos e fazendo-os seus. Fazendo-me abrir todas as portas e janelas da alma para deixar a luz e esse calor entrar e secar todos os resquícios de dúvidas, incertezas, frustrações e indecisões.
Eu lhe pedi para não me falar assim com essa voz quente, carinhosa. Voz que, como as águas de um rio, inundam e descem no seu curso me enchendo de sossego, de certezas, de porto seguro, de destino certo.
Eu lhe pedi para que não me tocasse assim com essa sincronia tão perfeita que só conseguem os amantes, os cúmplices. Com a delicadeza de uma musica; com o calor de manhãs mornas de verão, com a grandeza de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não se pode ser esclarecido e com a ternura de uma folha molhada pelo orvalho.
         Ah! Eu lhe pedi tanto que não fosse embora e me deixasse assim tão vulnerável, tão impregnada de você. Envolvida nessa magia de querer bem infinitamente, mergulhada em você, reduzida a você. E agora condenada a essa saudade que será infinita enquanto durar.

Marta Adalgisa Nuvens