segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O milagre



            Jacinta era uma moça de boa índole, bem nascida, bem criada, frequentou as melhores escolas, fez os melhores cursos, Tornou-se uma moça intelectualizada para a sua cidade do interior, na qual a população não valorizava muito uma educação assim tão esmerada. Estudar desse tanto, diziam “é pra gente que não tem o que fazer” “é pra gente que tem o miolo mole”. Mesmo sendo tratada com diferença pelos conterrâneos, ela era uma moça feliz. Convivia bem com todos e todos a tratavam bem. Mas, Jacinta era uma moça sozinha. Não conseguia arrumar uma companhia e isso a deixava triste. Embora fosse meiga, solidária, boa ouvinte e boa conselheira, isso não aumentava as suas chances de arranjar um bom marido... um namorado sequer. Os rapazes fugiam dela. Primeiro porque era muito feia, segundo, porque era sabida demais. Os rapazes se intimidavam com tanta inteligência.
Um dia, ela resolveu apelar para o santo da cidade, São Bom Jesus da Serra. Diziam que ele era casamenteiro e que moça que frequentasse as suas novenas, saberia logo se casaria ou ficaria no caritó. Então ela decidiu participar da sua festa anual para acabar de vez com essa procura. ‘“Com o santo, não tinha engano, ou ata ou desata, era pei bufo”, diziam. Comprou roupa nova como todos fazem e no dia 14 de setembro, o seu dia, subiu a serra, pelas escadas, para o santo visse que estava bem intencionada e foi para os festejos. Era uma festa tradicional. Todos os anos tudo se repetia exatamente igual, a não ser, naquele ano pela presença de Jacinta. Primeiro tinha uma missa na capelinha, lugar e hora de agradecimento pelas graças e favores alcançados, depois tinha a queima de fogos de artifício celebrando os festejos e em seguida um leilão sob a sombra de um visgueiro centenário onde as famílias se reuniam arrematando prendas, matando a sede com bebidas geladas e matando a fome com comidas típicas. Era nessa hora que Jacinta se mostraria mais. Na hora do entretenimento, da distração de todos. E ela estava certa. Foi nessa hora que os seus olhos se cruzaram com os olhos do motorista do caminhão de romeiros. Foi um momento mágico. Parecia mesmo que tudo acontecia sob a influência e as bênçãos do santo.
O rapaz se aproximou depois de muitos olhares e começaram a conversar. Ambos tímidos, talvez pela falta de costume, pois na beleza ou, melhor dizendo, na escassez dela eles eram iguais. Conversa vai, conversa vem, resolveram se afastar um pouco mais do grupo, o barulho era grande e eles, nesse momento, precisavam de um lugar mais tranquilo para que se conhecessem melhor. Saíram passeando devagar, parando aqui acolá pra que ela lhe mostrasse o lugar e a história dele. Era uma serra bonita coberta de verde, de clima ameno e de uma vista panorâmica de cortar o fôlego. Via-se todo o vale, os pequenos rios, as estradas se entrecortando e as pequenas comunidades lá em baixo. Sentaram-se numa pedra à beira do abismo mais afastada ainda de todos e partiram para os preliminares de um romance que, pelo visto, parecia ser duradouro, a julgar pelo interesse mútuo.
Mas, como diz o dito popular: “Quem nunca come mel, quando come se enlambuza”. As carícias e as vontades foram além do limite e numa investida menos despudorada do motorista e num disfarce de pudor da moça, ela recuou mais do que devia, perdeu o equilíbrio e tombou serra abaixo. Ele a via despencar precipício abaixo como uma folha de papel ao vento devido a sua magreza e o seu vestido novo que se encheu de ar. Ficou desesperado. Gritou, chamou a atenção e muitos correram para ver o acontecido. De Jacinta nada mais se via. Desceu. “Espatifou-se nas pedras” muitos pensavam, choravam e torciam para que o pior não tivesse acontecido. Outros pensavam: “Foi empurrada, coitada”! “Feia do jeito que era o rapaz não quis, ela insistiu e ele a empurrou”. Nesse intervalo, muitos já corriam serra abaixo para ver o resultado triste da alegre Jacinta. Os primeiros que chegaram ao suposto local de colisão nada viram. Procuravam por todos os lugares e nada de Jacinta. Uns calculavam a trajetória do vento e na possível mudança de local, outros, impacientes, formavam grupos de buscas para ver se ainda a encontravam com vida. E foi uma dessas equipes que, nas buscas, ouviram um pequeno gemido no alto das suas cabeças e a viram pendurada numa árvore presa num galho por seu vestido novo. Imóvel, com medo de se mexer e cair daquela altura ainda considerável, não gritava por socorro, apenas gemia baixinho.
E foi assim que se deu o milagre. Para os católicos, o milagre foi do santo que não a deixou morrer; para os ateus, o “milagre” foi do vestido novo que resistente a prendeu nos galhos de uma árvore igualmente resistente e para os românticos, o milagre foi do amor e da vontade de vivê-lo depois de tanto tempo de espera.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

Nenhum comentário:

Postar um comentário