sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O jogo de futebol


            José Simplício era o seu nome, mas Zé Briguilo era como o chamavam. Exímio jogador de futebol, ponta esquerda driblador que infernizava a defesa e a área dos adversários. Era disputadíssimo pelos times que se formavam nos rachas do Ferreirão, campo da sua cidade. Além disso, não levava desaforo pra casa. Desentendimento dentro de campo ou fora dele, ele encarava. Por ser pequeno e magrinho era rápido com as pernas e com a língua. Dava rasteira tão bem como xingava a mãe do seu opositor e toda a geração de mães daqueles que presenciavam a cena. Mas era boa gente. Embora não trabalhasse por causa da preguiça era muito honesto. Nunca pegava no alheio. Gostava de ficar em rodas de bares tomando pinga se aparecesse alguém que pagasse. E nunca faltava um pagador. Todos o queriam no seu time e tratavam de agradá-lo. Contador de vantagem que só. Imaginava-se um dia jogando com Pelé no mesmo time e de preferência, no Santos time pelo qual torcia por causa do seu ídolo.
            Um dia, o gerente do banco da cidade organizou um jogo beneficente em prol das vítimas da enchente das chuvas que ainda estavam por vir (tudo era motivo para se jogar bola) e convidou um time da cidade vizinha. Apesar de ser um amistoso sabia-se da rivalidade das duas cidades e, por esse motivo, o próprio gerente, por causa da sua influência e amizades na região, seria o árbitro da partida.
            Propagandas feitas e amplamente divulgadas chegou o dia do jogo e, para festa ser ainda maior, era dia dos pais, final de tarde com casa cheia, banda de música tocando enquanto aguardava a execução do hino nacional se misturando com o barulho dos tambores da charanga. Toda a cidade estava lá sem contar com vários paus-de-arara cheios de torcedores do time adversário; homens, mulheres, crianças, bandeiras agitadas na arquibancada, vendedores de tudo passando por entre as torcidas oferecendo o seu produto. Enfim uma verdadeira tarde de futebol.
            Tudo pronto começou a partida. Como era de se esperar, Zé Briguilo comia a bola e irritava os adversários que procuravam a todo custo manter uma marcação colada sobre ele na busca de evitar o primeiro gol. Jogo de festa geralmente sai empate, mas esse era diferente; tinha a rivalidade entre os times e entre as torcidas. De repente, uma bola dividida e falta na ponta esquerda, justo em cima do craque que, em cobrança perfeita, fez o gol. Aplausos e vivas de um lado, xingamento e cara feia do outro, e o jogo continuava. No finalzinho da partida, não se sabe se por causa da pressão dos visitantes ou não, pênalti para o time adversário. O Juiz apitou está apitado. Não adiantaram os protestos dos jogadores e nem da torcida local. Era pênalti e estava acabado.
            Antes que a cobrança fosse feita os jogadores liderados pelo artilheiro cercaram o árbitro e no empurra-empurra começou a confusão. Outros jogadores menos esquentados o tentavam proteger, mas Zé Briguilo irritado comandava o espetáculo. Nada adiantou. De repente, via-se o juiz correndo na frente com o apito na mão, atrás dele muitos jogadores querendo pegá-lo e ele dando voltas no campo tentando driblar os atletas revoltados que queriam lhe dar umas boas bofetadas. A polícia, que se resumia em quatro soldados, olhava a cena e não sabia para onde ir, porque se dentro de campo a coisa estava feia, fora dele estava pior. As torcidas se encontraram e a confusão se generalizou. Era gente impedida pela multidão tentando em vão correr, sair da zona de perigo, enquanto isso, tabefes, chineladas, murros, puxões de cabelos, chutes, os mastro das bandeiras subiam e desciam em meio à multidão e cada um se protegia como podia.  A essa altura, até cuspida na cara do outro valia.
            Em meio à agonia e com medo de ser pego, o gerente do banco viu um clarão de um lado do campo e correu naquela direção, mas quando chegou perto viu que era um beco sem saída. Ali terminava o terreno do Ferreirão e tinha uma cerca bem resistente de arame farpado. Sem vacilar ele mergulhou nela tentando acertar o espaço entre os dois fios. Do jeito que a turma de jogadores vinha pega-não-pega atrás dele, era melhor ficar todo arranhado do que sofrer a humilhação de levar uma boa surra; ainda mais alguém da sua importância social. Acertou, isto é, quase acertou. A metade do corpo passou muito apertada e saiu do outro lado toda arranhada e sangrando, mas a outra metade não. O elástico do seu short ficou preso na roseta do arame e ele ficou enganchado. Da cintura para baixo ficou do outro lado, na zona de conflito e aí o pau cantou. Até que ele conseguisse se desvencilhar do arame a das agressões já estava todo cheio de hematomas.
            Na torcida tudo foi voltando ao normal depois que a polícia deu alguns tiros para cima. Foi um corre-corre, gente pisoteada, outros se aventuraram como o juiz, na cerca de arame, mas o tumulto foi contornado. Agora era socorrer os feridos, orientar os bêbados no caminho de casa e ver os estragos materias causados pelas pedradas, vindas não se sabe de onde, que atingiram os carros estacionados ali perto.
            No dia seguinte, foi-se ver o resultado do jogo beneficente. Entre mortos e feridos, todos escaparam. A maioria saiu ilesa, alguns precisando de consolo, outros de curativos e vários foram para o hospital. Inclusive o nosso gerente que depois de medicado, pediu uma licença do trabalho e depois a transferência da cidade, dizem que com vergonha da sova que levou. Depois desse dia, os jogos continuaram a acontecer e o melhor jogador que já se viu na região ainda atuou por muitos anos, fez muitos gols e deu muitas alegrias a torcida, mas nunca mais se ouviu falar numa partida de futebol como aquela.

Texto: Marta Adalgisa Nuvens

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